Todo esporte precisa de pessoas dispostas a extrapolar os limites do normal para que possa evoluir. O surf nacional e mundial é terra fértil nesse sentido. Não fosse um punhado de homens destemidos e arrojados talvez o esporte nem tivesse chegado ao Brasil, não seria um dos mais praticados do mundo, não teria se desdobrado em novas modalidades. Ao longo de sua história, a Trip registrou em suas páginas a sabedoria e a história de alguns dos protagonistas fundamentais para levar o surf a um lugar mais nobre. Mais perto de onde ele merece estar Frases dos mitos tubulares da Trip: “livrei-me da casca da burguesia, aquela coisa que faz com que as pessoas de certo status social fiquem todas parecidas no mundo inteiro” Arduino Colasanti “pra mim, Nenhuma época dá mais saudade que outra, eu acho minha vida muito boa. eu gosto do passado, do presente e espero um futuro bom” Petit “Quando você quiser encarar uma onda gigante, olha o mar por 30 segundos, vai de cabeça baixa pra beira, entra e vai embora. Se você ficar olhando muito, cara, você não cai” Bocão
26 anos de praia: Mitos e desbravadores
Exército vermelho
Quando se canta o nosso “mulato inzoneiro” é muito comum que venha à cabeça a imagem de um povo apolíneo, cheio de ginga, alegria e – principalmente – com muita disposição para torrar ao sol. É justo. No fim das contas, o Brasil é um país fartamente abastecido por praias paradisíacas e, de fato, povoado por uma expressiva maioria que mal pode esperar o primeiro sinal do verão para botar coxinhas de fora e dar início aos trabalhos no seu cobiçado bronze. Há, todavia, um outro lado nesta moeda. Vivendo sua vida próximo a um trópico, o Homem Muito Branco está acostumado desde cedo a sofrer este pênalti. Mesmo nos estados do Sul, onde é mais abundante, ele já enfrenta temporadas senegalescas o ano inteiro. O cara tem que aprender a se defender. Pensando nas dificuldades enfrentadas por esse escasso fruto no pomar das raças brasileiras e tendo em vista a chegada inclemente da temporada anual de praia que acompanha o verão, elaboramos um pequeno Guia. Afinal de contas, como diz meu bom amigo Frei Hermann, cuja face parece um sol de tão larga, acolhedora e iluminada, “ninguém tem pena de alemão grandão”. a) PROTEÇÃO a.1) BLOQUEADORES SOLARES a.2) ABRIGOS Estúdio X+X Czarnobai bem à vontade: para ajudar seus pares, o escritor foi a campo. Aliás, foi à praia a.3) INDUMENTÁRIA b) HIDRATAÇÃO b.1) COM ÁLCOOL b.2) SEM ÁLCOOL C) ALIMENTAÇÃONo país da gente bronzeada, o escritor gaúcho André “Cardoso” Czarnobai mostra seu valor: um guia de sobrevivência para homens muito brancos no verão brasileiro
Muito embora o branco seja a frequência do espectro que menos absorve os raios solares, refletindo-os de forma extrema, vale notar que o Homem Muito Branco não é de fato muito branco, e sim alguma coisa entre o consideravelmente rosa e o vagamente creme. Portanto, vale a atenção: apesar de a camiseta branca oferecer uma sensação térmica bem mais aprazível do que a preta, o mesmo não é verdadeiro no tocante à tez.
Coisa penosa é, toda manhã, ter de besuntar o corpo com um óleo tão grosso que, quando o cara finalmente consegue se livrar dos últimos vestígios, já é hora de passar tudo de novo. Isso sem falar nas marcas modernosas que acrescentam aromas adocicados ao creme, atraindo a presença de abelhas e atiçando o faro de cães mais sensíveis.
Guarda-sóis são bons. Barracas são boas. Até a sombra de uma frondosa árvore é boa. Mas a melhor técnica para se proteger da exposição direta ao sol continua sendo o “ficar em casa no ar-condicionado jogando videogames”.
Com os termômetros marcando 40 graus, vale tudo na luta pela vida: usar dois bonés (um virado para trás para proteger o cangote) ou papete fatal para não grelhar a sola dos pés. No tocante à roupa de banho, há diferentes escolas, que variam de estado para estado. Em alguns, o cara pode causar furor ao usar uma sunga asa-delta, em outros, por usar uma bermuda cáqui com bolsos múltiplos e cinto. Mas, como mais cedo ou mais tarde o Homem Muito Branco vai ter de entrar de camiseta no mar, a real é que tanto faz.
Não sei se o Homem Muito Branco sua mais ou menos do que o Homem Muito Negro, Índio, Mameluco ou Cafuzo – todavia suponho que sue mais do que o Muito Oriental. De qualquer modo, manter-se hidratado é fundamental. Só há duas possibilidades de fazer isso:
Tudo bem que a cerveja nacional é um elixir terrível de milho e repolho que só dá dor de cabeça, barriga inchada e peidorreira cabal, mas há um contexto em que ela se torna aceitável: gelada pra burro, na beira da praia, num dia de sol. É também a postura que faz o Homem Muito Branco parecer o menos gringo possível, já que a caipirinha vai atrair todos os vendedores de artesanato rupestre, tatuagens removíveis e passeios de escuna num raio de aproximadamente 8 quilômetros.
Água, de preferência da torneira, pra já ir acostumando o organismo (leia mais no item c). A água fornecida pelo fruto coco também pode ser consumida, bem como as demais águas fornecidas pelos demais frutos (alguns chamam de suco).
A despeito do que dizem os nutricionistas de todo o mundo, não leve suas frutas à praia. Se você é mesmo um Homem Muito Branco, você transa frutas estranhas. Imagine que você está lá curtindo um barato com os seus amigos e aí, muito casualmente, puxa uma carambola da valise. Pronto. “Olha lá, o gringo tá comendo carambola.” E aí, coberto de bloqueador 60, a bermuda cáqui toda molhada, de camiseta do Hard Rock Café de 1993, sombreiro, papete (e se bobear até meia), lá se foi o seu último bastião de dignidade. Melhor evitar. A coisa toda já é tão difícil. Pra que complicar?
Lemann bróders
Foi há 60 anos, mas ele descreve como se tivesse acontecido na semana passada. Arduíno Colasanti chegou ao canto esquerdo de Ipanema e viu um broto espetacular na água. “Ela estava descendo umas marolas de peito. Só havia nós dois na praia, e eu lhe ofereci minha tabuinha de pegar jacaré”, conta. Ela tinha 15 anos; ele, 16 – apenas cinco de Brasil. “Eu era muito italianinho ainda. Minha prancha tinha pintada a loba de Roma.” Filha da primeira mulher a usar maiô de duas peças no Brasil (a bela alemã Miriam Etz), a moça tinha puxado à mãe também no comportamento avançado. Seu pai, Hans, era um artista plástico boêmio, amigo de Paul Klee e Alexander Calder. Não demorou muito até que Ira (batizada Iracema) e Arduíno dessem as mãos pela primeira vez, em uma sessão de Scaramouche no cinema Metro, trocassem referências literárias avançadas para suas idades e daí engrenassem um namoro. Cultos e belos, louríssimos, por três anos os dois formariam o mais admirado casal do Arpoador, naquela época o point preferido dos gringos e dos adeptos da pesca submarina. Entre 1955 e 1963, a mistura de estrangeiros de modos liberais e jovens esportistas com sede de contato com a natureza gerou, segundo a definição de Ruy Castro, “o grande laboratório de costumes da cidade”. Em crônica, Drummond arriscou definir assim o pedaço de areia: “É aquele lugar dentro da Guanabara e fora do mundo aonde não vamos quase nunca e onde desejaríamos (obscuramente) viver”. “Havia na praia os grupinhos: o dos alemães, o dos franceses... Os brasileiros que não praticavam atividades esportivas tinham preguiça de andar até o Arpoador”, lembra Arduíno. Além da beleza das pedras, cenário onde o cronista João do Rio jurou ter visto Isadora Duncan dançar nua, em 1917 (“uma daquelas paisagens de Shelley em que a natureza parece findar-se no inebriamento espiritual de sua própria luxúria”), havia as ondas, muito melhores que as da vizinhança para a prática do jacaré. Arduíno Colasanti conta que o primeiro que viu em pé sobre uma prancha foi Paulinho Preguiça. “Antes, só em revista” Arduíno pegava o bonde 11 do Jardim Botânico, onde morava, até o Bar 20, no lado oposto de Ipanema, e de lá tomava o Gal (tratamento popular dispensado ao general) Osório para saltar no ponto final, a cerca de um quilômetro da Pedra do Arpoador. O namoro com Ira lhe facilitou as atividades marítimas. “Ela morava ali perto, na rua Joaquim Nabuco, e eu guardava minhas tralhas de praia lá: a tábua de jacaré e o material de mergulho. Se tivesse onda, era jacaré. Se estivesse manso, mergulho e pesca.” Preguiça e Bisão A história do surf no Brasil registra que, em 1938, na praia do Gonzaga, em Santos, Osmar Gonçalves, Juá Haffers e Silvio Manzoni conseguiam ficar em pé numa prancha – que eles mesmos construíram. Thomas Rittscher, morto no ano passado, garantia ter feito isso antes, entre 1934 e 1936, lá mesmo, em Santos. Em 1947, na casa do mitológico Paulinho Preguiça (também falecido), pertinho do Arpoador, o engenheiro Luiz Carlos Vital – o Bisão – construiu, com ajuda de George Grande e outros amigos, uma prancha oca enorme, quatro metros, com tampa e tudo. As ondas eram pegas em dupla, com Bisão, mais pesado, sempre na popa. O apelido, DC-4, remetia ao modelo de avião que ajudou a popularizar os voos comerciais intercontinentais depois da Segunda Guerra. Mas estava longe de ser eficiente, como atesta o depoimento de Grande: “Tomamos tombos horríveis, até que um dia consegui ficar em pé. Foi um jacaré maravilhoso. Depois a onda estourou, nos embrulhamos e a DC-4 se espatifou”. Mais jovem que essa turma, Arduíno Colasanti conta que o primeiro que viu em pé sobre uma prancha foi Paulinho Preguiça. “Antes, só em revista.” “Prancha” é uma licença poética: aquela tábua plana, sem quilha e quase quadrada era conhecida na praia como “porta de igreja”. “O Paulo descia do Pontão do Arpoador ajoelhado e, quando a onda dava aquela ‘meia enchida’, ele ficava em pé.” Os mais jovens ficaram impressionados e queriam fazer igual. Estava deflagrada uma corrida tecnológica por modelos que possibilitassem reproduzir a façanha daquele sujeito com profissão moderna: Paulo e ra operador de câmera de TV. Arquivo Pessoal/ Irencyr Brandão Arduíno Colasanti e sua lendária prancha “porta de igreja” Arduíno, que anos depois faria carreira como ator, conseguiu ficar em pé antes dos outros. Mais uma para a conta do italiano, também pioneiro na caça submarina, acostumado a desbravar lajes e a pegar os maiores peixes. Mas Bisão aperfeiçoou a curvatura da proa das pranchas e agraciou os melhores “pegadores” de joelho da turma com seis modelos iguais. E uma nova geração chegou forte. “O Jorge era o mais habilidoso, o melhor de todos nós, disparado”, relata Arduíno. O Jorge em questão é Jorge Paulo Lemann, um dos controladores da AB Inbev, o 36º homem mais rico do mundo, que no final de novembro ultrapassou Eike Batista no posto de mais rico do Brasil. Filho de suíços, Lemann morava no Leblon, em uma casa belíssima em frente ao canal da rua Visconde de Albuquerque. Segundo as memórias dos contemporâneos, era o único que tinha carro, um Ford cinza conversível. Aos 73 anos, o empresário gosta de recordar os tempos de praia, vividos entre 1959 e 1961, antes de trocar o Arpoador pela mais conceituada universidade americana. Foi o que fez no ano passado, em São Paulo, na palestra “O que aprendi em Harvard”, ao citar que era “um dos melhores surfistas do Rio”. Lemann fez o elogio de assumir riscos de forma responsável, algo que a universidade raramente ensina. Confundindo as unidades de medida, contou sua experiência com ondas de “dez a 12 metros” (certamente dez a 12 pés, algo entre três metros e três metros e meio) numa ressaca em Copacabana. “Eram tão grandes que era impossível nadar por baixo delas. No final, encaixotavam. (...) Peguei a onda, senti o sangue todo correndo pros pés, a velocidade era muito maior do que a que estava acostumado. E consegui sair antes que encaixotasse. Meus colegas falaram: ‘Vamos voltar’. Eu disse: ‘Pra mim, chega’. Gostei de sentir aquele perigo mas não queria repetir. (...) Em vários momentos da carreira me lembrei daquela onda, me dava mais segurança do que tudo que aprendi na faculdade. Tomar riscos no esporte contribuiu muito para tudo que aconteceu na minha trajetória.” (Nos anos 90, depois de muito tempo sem surfar, Lemann foi ao Havaí e não resistiu a alugar uma prancha. Foi castigado com uma queda que lhe fraturou a costela.) “Só treinando, só praticando, só ousando você consegue as coisas”, disse Lemann. “Pegar as maiores ondas possíveis, fazer as coisas mais difíceis... Tudo isso me ajudou a me tornar o empresário que eu sou” Lemann quase foi expulso de Harvard por comemorar o fim de seu primeiro ano letivo soltando cabeções de nego – de fabricação brasileira! No Rio, chegava a matar aulas em dias de mar excepcionalmente bom. Seu sonho de moleque era ser o maior tenista do mundo (foi pentacampeão brasileiro e jogou pela Suíça na Copa Davis de 1962), mas as ondas grandes o levavam para outra dimensão. “Era emocionante. Minha mãe às vezes tinha que me tirar do mar para me levar para um torneio de tênis”, revelou, em depoimento a um documentário (ainda inédito) sobre a história do surf no Brasil. Com as pranchas inadequadas e pesadas da época, aconteciam acidentes: Lemann precisou costurar a testa e teve cortes nos dedos após algumas trombadas. Mas aprendeu no Arpoador lições que soube tornar valiosíssimas: “Só treinando, só praticando, só ousando você consegue as coisas. Pegar as maiores ondas possíveis, fazer as coisas mais difíceis... Tudo isso me ajudou a me tornar o empresário que eu sou”. Outro surf O talento de Lemann no mar foi testemunhado por poucos. Quando voltou ao Brasil, o surf já era outro. Irencyr Beltrão, o Barriguinha, descobriu na ilha do Governador um carpinteiro que fabricava lanchinhas voadeiras com um compensado naval resistente à água do mar. Com isso, veio a era da madeirite, com pranchas mais adequadas e novos surfistas. Jorge Bally, o Jorge Perseguição, ou simplesmente Persegue, foi o sucessor de Lemann entre os jovens talentos do Arpoador. Ele conta que os mais velhos não diziam onde fabricavam seus cobiçados modelos. “Era tudo enrustido.” Mas Arduíno, que inicialmente trabalhava sozinho e não estava associado a Barriguinha nas invenções, acabou socializando o segredo. Em parceria com Persegue, aperfeiçoou as madeirites, graças aos ensinamentos de um velho exemplar da revista americana Popular Mechanics que o pai do jovem possuía. Nesse tempo todo, a “paisagem lunar” descrita por João do Rio continuou culturalmente fervendo. Roberto Menescal, da turma da caça submarina, ajudava a colocar a bossa nova em alto-mar. Em 1959, quando a revista Manchete quis dar uma capa com João Gilberto, fotografado nas pedras do Arpoador, o editor Justino Martins achou por bem garantir as vendas colocando no quadro, muito maior, a musa do pedaço: Ira Etz, a essa altura, com 22 anos, tão emancipada e antenada (vivera em Nova York, no Greenwich Village dos beatniks, depois do fim do namoro com Arduíno) quanto linda. Quando a revista “Manchete” quis dar uma capa com João Gilberto em 1959, achou por bem garantir as vendas colocando no quadro a musa do arpoador, Ira Etz, emancipada e antenada Os pais de muitas moças eram estrangeiros e seus costumes, liberais. Elas podiam usar biquínis menores (avistados por ali desde 1951, antes do resto do país), viajar com namorado e até pegar onda. Como resume Arduíno: “As meninas começaram a dar. Acabou a coisa de os rapazes terem de ir à zona. A convivência entre os sexos ficou mais natural.” Ver aqueles brotos descendo as ondas era “a coisa mais linda”, derrete-se ele. Uma das pioneiras, Maria Helena Beltrão, foi fisgada por Barriguinha, com quem se casou aos 18. Fernanda Guerra fazia judô e natação, sempre com o incentivo do pai, Walter, e da mãe, que era americana. Ela lembra daquele tempo como um privilégio. “Éramos umas 40 pessoas, todo mundo amigo. Um usando a prancha do outro. A gente saía da água e tinha uma fila esperando.” Até dois anos antes, a meta de quem pegava onda no Arpoador era ficar em pé na prancha e ir o mais longe possível na diagonal. “O suprassumo era chegar no edifício da esquina da Francisco Otaviano, mas isso era alcançado poucas vezes.” Em 1964, veio a revolução: um australiano chamado Peter Troy chegou da Amazônia peruana disposto a explorar as ondas brasileiras, mas combalido por amebíase. Foi acolhido por Barriguinha, cujo pai era médico. Quando o gringo ficou bom, Arduíno tinha acabado de fazer um bem-sucedido modelo de longboard (mais de três metros) usando resina epóxi, que não corroía o isopor dos moldes. Como o mar no Arpoador não estava bom, levaram Troy até um selvagem Recreio dos Bandeirantes, a 35 quilômetros dali. “Ele pegou duas ondas. Andou em cima da prancha. Fez um hang five com a perninha esticada. Depois deu um bottom turn, mas tão cavado que arrancou o fundo da prancha.” Quando aquele garoto australiano entrou no mar com uma prancha de fibra de vidro foi um choque para os brasileiros. “Ele mostrou coisas que nós nem sabíamos que podiam ser feitas”, lembra Arduíno Colasanti Boquiaberto, Arduíno não ficou chateado com a “morte” de seu modelo. Ele e todos os amigos que estavam de plateia encararam como uma aula, repetida em escala muito maior no Arpoador, com uma prancha americana Bing de fibra de vidro emprestada por um adolescente americano chamado Russell Coffin, filho de um executivo da Coca-Cola que anos depois viria a se tornar fabricante de blocos de poliuretano para pranchas de surf. “O queixo da gente caiu. Ele mostrou um monte de coisas que não sabíamos que podiam ser feitas.” Troy surfou poucas vezes no Rio antes de seguir a vida de viajante, três meses após a chegada. Soul surfer da mais pura essência, pegou ondas em 140 países, desbravando picos míticos como Nias, na Indonésia. Retornaria ao Brasil em 1981 e 2002, sem cair novamente no palco inaugural do surf no Brasil. Em 2008, aos 59 anos, morreu, com um coágulo no pulmão. Sua passagem em 1964 foi um divisor de águas brutal. “Muita gente deixou de surfar com a passagem da madeirite para a fibra. Foi uma mudança da água pro vinho”, conta o veterano Armando Serra, 63 anos. A partir daí, começaram a aparecer mais e mais americanos e pranchas importadas no cantinho de Ipanema. Com eles, pouco depois, a maconha. “É surpreendente, porque poderia ter vindo dos morros, ali do lado. Mas veio com eles. Modesto, ele diz que teve muito reconhecimento para “pouca produção” e faz questão de desmitificar a condição histórica de primeiro campeão de surf no país. “O torneio que tínhamos combinado era de pesca, com um churrasco marcado para depois. Mas o mar estava de ressaca, e fomos direto pro churrasco. Lá, tomamos caipirinhas e chegamos à conclusão de que, se tinha onda, o campeonato deveria ser de surf. Viemos pro Arpoador com aquelas meninas todas – porque era uma festa . O vencedor era definido por aclamação do público, e eu ganhei só porque peguei mais ondas. E porque o Jorge Americano (ou seja, Jorge Paulo Lemann) não estava. E porque a minha namorada, a Ira, era meio ‘chefeta’ da praia, levou umas amigas e comandou a torcida por mim.” Um orgulho, porém, ninguém tira de Arduíno Colasanti: “Eu era o melhor pescador do Arpoador. Sempre fui”.O Arpoador, canto de pedras com ondas perfeitas colocado estrategicamente entre Ipanema e Copacabana, foi o esplêndido berço da turma que procurava uma vida diferente da traçada para a juventude no final dos anos cinquenta. Desse “laboratório de lifestyle” saíram não apenas boa parte dos contornos da cultura de praia carioca (e brasileira), mas percepções e insights fundamentais para a formação de um dos mais notáveis empresários do país – e, entre outras coisas, o homem mais rico do Brasil
A princípio foi combatida, mas foi ficando... mais aceita. E passou a ser até um gesto revolucionário”, revela Arduíno, adiantando o relógio até 1968.
Alguma coisa acontece
Há alguns meses, cruzando os dados do último Censo inglês, pesquisadores do European Centre for Environment & Human Health, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, fizeram uma descoberta curiosa, ainda que não exatamente surpreendente: quanto mais perto do mar as pessoas vivem, melhor é a avaliação que fazem da própria saúde. Isso significa que as populações litorâneas sejam, de fato e sempre, mais saudáveis que as do interior? Não. Mas significa que elas se sentem muito melhor na própria pele. Se as praias inglesas são capazes de proporcionar sensação tão nítida de bem-estar, imagine na Jamaica – ou aqui. Mas ainda resta entender o que o estudo não explica. Quais são os estímulos e mecanismos específicos que fazem da praia um ambiente particularmente eficiente para descomprimir e recarregar baterias? O que ela tem que revigora, acelera convalescenças, acalma, esquenta a alma, contenta? Como observou o principal autor do estudo, Ben Wheeler, são surpreendentemente poucas as evidências científicas que atestem quais aspectos fisiológicos são afetados quando estamos na praia. Ao divulgar sua pesquisa, em abril de 2012, o Wheeler teve o cuidado de declarar: “O estudo sugere que há um efeito positivo na saúde, mas não pode comprovar causa e efeito”. Para ele, é preciso realizar estudos mais sofisticados para desvendar razões que expliquem o que está sugerido. Mas a conclusão já abre espaço para tentarmos descobrir como cada ambiente natural atua sobre o organismo humano. As sugestões do estudo ganharam na mídia europeia diversas interpretações. Surgiram desde explicações mais óbvias – do convite ao exercício físico prazeroso que a praia proporciona à carga de iodo do ar marinho, que estimula o intelecto e reduz a fadiga – a tentativas de aprofundamento: boiar no mar, por exemplo, faria o sangue refluir dos membros para o abdôme, aumentando a oxigenação do cérebro; os íons negativos do ar marinho equilibrariam nossa serotonina, melhorando humor e sono; e o som das ondas alteraria o padrão da atividade cerebral, levando a um relaxamento profundo e, no fim das contas, revigorante. O neurocientista brasiliense Sidarta Ribeiro, 41 anos, não tem notícia de estudos conclusivos a respeito do tema, mas põe sua mão no fogo por essa última hipótese: “Tenho certeza de que, se colocássemos uma pessoa para dormir na praia e fizéssemos uma polissonografia [o registro detalhado da atividade elétrica cerebral], veríamos uma sincronização entre as ondas cerebrais e as ondas do mar”. Homenageado pelo Prêmio Trip Transformadores de 2007 e diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, em Natal, ele aposta que esse efeito terapêutico, que organiza a atividade cerebral e induz ao sono, é só um dos benefícios de viver com o “marzão na janela”, como ele. “Tem um custo morar na praia, levo tempo pra chegar no trabalho, mas acordar e olhar um horizonte aberto não tem preço, porque equilibra. Já sabemos que a mente é porosa. O ambiente ajuda a pensar e a sentir.” Marcos Vilas Boas Observar ventos e marés foi outro hábito que o cientista adquiriu, e que o ajuda a “conectar-se com o ritmo do planeta”. “É um ambiente cheio de informação. Aos poucos, você percebe que há uma ordem nas coisas naturais. E isso mexe com estruturas profundas da gente”, explica. “Evoluímos na natureza. Há 20 mil anos conhecemos o mar, a chuva, o sol. Viver em apartamentos de 30 metros quadrados é algo que começamos a fazer há relativamente pouco tempo. Por isso estressa: não estamos adaptados ainda”. “A praia, sozinha, não faz a mágica”, diz o mestre de ioga uruguaio Pedro Kupfer, 46 anos. “Tem gente que consegue ficar estressada nos lugares mais paradisíacos, que vai em busca de tranquilidade e fica enfurecida por só encontrar trânsito e barulho. Mas se a pessoa tem um mínimo de sensibilidade, vai vivenciar os benefícios da proximidade com o mar.” Surfista com um gosto muito particular para praias – prefere as “desertas, rochosas, frias e de paisagem cinza “ –, ele mesmo não fica mais que alguns dias longe do mar, e chega a recusar trabalho para não ter que fazê-lo. “Preciso de um horizonte para olhar e tenho uma relação muito física com o mar”, explica. “A praia ‘reseta’ a mente. Ela recarrega as baterias porque é um lugar cheio de elementos da natureza e de energias em movimento: o vento que desloca as massas de ar, marés que sobem e descem, ondas que passam e arrebentam. Tudo isso ativa nosso dínamo”. A exposição do corpo aos agentes naturais é um dos pontos para a pesquisadora carioca Lygia da Veiga Pereira, que tornam a praia uma experiência mais completa de prazer do que, por exemplo, o campo. “Na praia a gente fica pelado, praticamente. É muito raro que nosso corpo fique tão exposto e seja tão tocado. As ondas são um carinho no corpo”, diz. “quem tem um mínimo de sensibilidade, vai se beneficiar de viver próximo ao mar” Adepta da prancha de standup, ela gosta de se afastar da praia para sentir, só e no silêncio, a “enormidade” do mar. “Amo praia. Vivi até os 22 anos no Rio. Nos fins-de-semana descia para tomar café já de biquíni”. Morando em São Paulo, onde dirige o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da USP, às vezes embatuca diante da decisão de alugar uma casa no Litoral Norte – e enfrentar o trânsito. “Mas quando a gente se vê lá, sempre conclui que vale a pena.” “Fico emocionada na praia. Na medida do digno, volto à infância. Além de linda, a praia é lúdica. É uma situação que mexe com todos os sentidos de uma forma deliciosa: o calor do sol, a textura da areia, o contato com a água, a beleza do mar, o movimento e o barulho das ondas, o cheiro de maresia, o gosto de sal”, reflete. “Talvez isso se traduza, de alguma forma, em estímulos positivos para nosso cérebro”. Sócio e VP de Criação da agência Loducca, em São Paulo, o publicitário Guga Ketzer, de 37 anos, redescobriu a conexão com o mar que tinha na infância – e da qual se esqueceu ao mudar-se para São Paulo. Dez anos depois da mudança, ao passar uma temporada de férias no Havaí, Guga teve praticamente uma epifania: percebeu o quanto aquilo era vital e transformador. Faz três anos que isso aconteceu e, desde então, ele aluga a mesma casa de frente para o mar em Sunset, no litoral norte do Havaí, para passar um mês de férias com a mulher, a designer de joias Fabiana Malavazi. E assim pretende fazer todos os anos. No mar, Guga vive uma experiência física que considera única e intransferível. “Não sinto a mesma coisa em um lago, uma represa ou debaixo de uma cachoeira. Brisa, cheiro do sal, caminhada na areia: é esse conjunto que me atrai”, conta. Mais do que a experiência física, a conexão havaiana representou uma jornada espiritual: ao reconectar-se com o mar, entendeu a sensação de não estar no comando, que lhe trouxe um novo olhar sobre a vida e a carreira. Andando descalço e vivendo com pouco, entendeu o tédio consumista. E, finalmente, religou-se ao ritmo natural da vida. “Praia pra mim é voltar ao mínimo. Meu quarto no Havaí não tem nem cortina: você dorme com a lua e acorda quando a luz chega. Você entra no ciclo do lugar, e não o contrário”, observa ele, que abomina a ideia, tão em voga, de fazer da praia uma extensão do que já se vive na cidade – cheia de serviços, trânsito de carros e prédios em frente ao mar. “Morar na praia traz uma alienação do bem”, diz o escritor Mario Prata, que trocou São Paulo por Florianópolis há 12 anos. “Não leio notícia de Israel há muitos anos, por exemplo. Esse assunto me dá urticária. Tenho pouco tempo de vida, não posso desperdiçar com Gaza.” Na ilha, com o mar na janela da frente a Mata Atlântica na janela de trás, parou de fumar depois de 50 anos e aprendeu a respirar de novo, ajudado pelo ar puro e as caminhadas na praia. “Aqui faz um puta sol. A temperatura é sempre 2 graus abaixo do Rio e 2 graus acima de São Paulo. Em setembro, tirei a meia. Meia agora, só em maio”, ri. “Além disso, levo 35 minutos para chegar ao aeroporto, a 35 quilômetros. Se você der 5 paus para o manobrista, o cara fica feliz. E neguinho não buzina no trânsito, você não quer dar porrada nele, não fica com medo que ele te dê uma porrada. Tudo isso faz bem para a saúde”. Mineiro de Uberaba, Prata não tem grande fetiche pelo mar, que viu pela primeira vez aos 16 anos. Mais do que o banho eventual, diz que o que faz diferença na vida é ter saído de São Paulo. Mas admite que contemplar o mar da sua varanda virou hábito diário. “Quando entrei em meu primeiro apartamento aqui, que era baratíssimo e tinha essa vista, pensei: Deus acredita em mim”. Marcos Vilas Boas Pablo Picasso e sua musa Françoise Gilot em Côte D’Azur, em foto clássica de Robert Capa: é o litoral mexendo com nossas estruturas Banho de mar: doce remédio O banho de mar como o conhece-mos – modalidade de lazer coletiva, praticada sem restrições e quase sem roupa – ainda não tem cem anos. Mas há pelo menos dois milênios especula-se sobre o poder curativo da água marinha. No século 1 a.C., Hipócrates já a indicava no tratamento de afecções pruriginosas. É o que lembra Leopoldino de Vasconcellos na dissertação que apresentou à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1907. À época, o banho de mar terapêutico estava em voga na Europa. Médicos franceses e alemães o indicavam para tratar escorbuto, icterícia, problemas gastrointestinais, até tuberculose. Coube à família real portuguesa lançar a moda aqui. Dom João VI beneficiou-se da ação antibiótica da água do mar para curar uma mordida de carrapato inflamada. O rei banhava a perna (parece que nunca tomou banho de corpo inteiro) na então cristalina (e hoje aterrada) praia do Caju. A “praiaterapia” chegaria ao século 20. “Os anêmicos, os escrofulosos, os convalescentes em geral melhoram muito com os banhos de mar”, escreve o doutor Plínio Olinto na Revista da semana, em 1915. Ele atribui o sucesso do tratamento ao “movimento das ondas” e adverte: “Não há necessidade de mergulhos, nem pulos, nem gritos, nem prolongados esforços de natação”. Ilhas para não morrer tão cedo O arquipélago de Okinawa, no Japão, abriga a população feminina mais longeva do mundo. Em Ikaria, ilha grega, os homens têm quatro vezes mais chances de chegar aos 90 anos do que nos Estados Unidos, além de sofrer menos de depressão e demência. Na península de Nicoya, Costa Rica, vive-se mais do que a média porque morre-se menos na meia-idade. A Sardenha, ilha italiana, tem a maior concentração de homens centenários da Terra. E em Loma Linda, Califórnia, uma comunidade de adventistas do sétimo dia vive, em média, dez anos mais que os demais americanos. Descobertos em uma pesquisa da National Geographic Society, coordenada pelo educador e documentarista americano Dan Buettner, esses “bolsões de longevidade” não foram apelidados de Zonas Azuis à toa. De todos, só Loma Linda não fica no mar. Curiosamente, a praia tem pouco peso entre os fatores que Buttner arrola no livro The Blue Zones: Lessons for Living Longer from the People Who’ve Lived the Longest. Se o ambiente natural estimula a atividade física, o que faz com que essas comunidades vivam mais é uma combinação de fatores que inclui dieta fresca, laços sociais e familiares sólidos, mecanismos antiestresse (sestas, meditação) e um senso de propósito, religioso ou não, afirma.Enquanto estudos ainda tentam comprovar cientificamente, as mais diversas experiências pessoais não deixam dúvida: tudo muda no corpo (e na mente) quando estamos na praia
Os grandes clássicos da Música Praieira do Brasil
Claro que não está certo dizer que tudo começou com Dorival Caymmi. Mas é bem verdade que ninguém dava tanta bola para a relação, digamos, amorosa entre a música popular brasileira e a praia até que, em 1954, o compositor baiano batizou seu primeiro LP (um long-play de dez polegadas e oito músicas) de Canções praieiras. Naquele momento, com o conceito de arranjo (só voz, violão e assovio do próprio autor) dos futuros clássicos “Quem vem pra beira do mar”, “O bem do mar”, “O mar”, “Canoeiro”, “É doce morrer no mar”, “A jangada voltou só”, “A lenda do Abaeté” e “Saudade de Itapuã”, Caymmi inventava um gênero. No mínimo, dava um nome a ele. Daquilo até “A praieira”, de Chico Science (do também clássico Da lama ao caos, 1994), ou até o verão que vivemos agora, praia e música só desenvolveram (e discutiram) a relação. “Essa relação está ligada aos primórdios da gente”, diz Marina Lima. “A composição do mar, dizem alguns cientistas, é parecida com a da placenta. Por isso, a gente tem a sensação de já pertencer ao mar desde antes de nascer.” Entre outras canções feitas olhando para a praia, ela é autora, com o irmão Antonio Cicero, de “Virgem”, em que a personagem sofre de amor sentada na areia do Leblon. Marina, que nasceu em Ipanema, começou a cair no mar muito nova, sem ter noção da importância daquilo. Quando morou nos Estados Unidos, criança, sentiu “falta física” do mar. “Era meu hábitat. Foi um choque.” Voltando ao Brasil, com 12 ou 13 anos, saciou a sede ao limite e começou a surfar. “Depois dos 30, não senti mais falta física. O mar ficou dentro de mim, uma memória interna.” Hoje, ela vive em São Paulo. Quando quer ver o mar, fecha os olhos. Depois da Bahia de Caymmi, o Rio de Marina tornou-se o símbolo nacional do mar, da praia, do surf – ao menos no imaginário da música popular brasileira. Isso porque, quatro anos depois de lançado o tal dez polegadas de Caymmi, chegou às lojas o primeiro 78 rotações de outro baiano, João Gilberto. Tinha, do lado B, “Bim bom”, do próprio João. E, do lado A, “Chega de saudade”, da carioquíssima dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Nascia ali, em frente ao mar do Rio de Janeiro, a bossa nova. A maior – e mais praieira – revolução musical do país. “A vida que levávamos junto a Copacabana, e depois a Ipanema, nos levou a compor pensando na natureza, no mar”, conta Roberto Menescal, autor (com Ronaldo Bôscoli) de “O barquinho”, símbolo do clima “sol e mar” brasileiro. “Escrevíamos as canções inspirados por aquela liberdade que era usufruir de um local totalmente democrático, onde fazíamos também os primeiros arremedos de surf, vôlei, tênis de praia, futebol. E, à noite, violão.” Foi na areia de Copacabana que Menescal e Bôscoli compuseram ainda outros clássicos do movimento como “Nós e o mar”, “Ah, se eu pudesse”, “E nem o mar sabia” e “Rio”. Já “Vamos pranchar”, dos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle (lado B do compacto que tinha “Samba de verão”), foi composta para a direita de quem olha o mar. “Fizemos surfando nas ondas do Arpoador”, lembra Marcos. “O próprio ‘Samba de verão’ foi uma consequência da nossa paixão pela praia. Eu estava no Arpoador quando mostrei a música ao Menescal. Sentado nas escadas do posto de salvamento, de sunga, toquei o samba. Ele disse: ‘Esse vai estourar!’. Fiquei na dúvida: ‘Será?’.” “Em São Paulo também tem praia, como não? Não demora muito mais do que uma hora pro cara pegar o carro e chegar em Santos”, reclama Roger, vocalista do Ultraje a Rigor e autor de “Nós vamos invadir sua praia”, sucesso de 1985 e trilha sonora, até hoje, para qualquer tipo de invasão. Interpretações posteriores criam que Roger havia composto um manifesto para tomar a música brasileira, dominada pelos cariocas. Ele afirma que fez a letra principalmente para protestar contra o fato de que artistas não cariocas precisavam acontecer no Rio para chegar ao resto do país, já que todo o esquema de mídia, incluindo gravadoras, estava instalado lá. Também valeu de inspiração o rebuliço causado pela criação de uma linha de ônibus que levava banhistas do subúrbio às praias da zona sul. "Só depois de uns anos morando em uma cidade sem mar eu noto como ele influenciou meu jeito de ser. Sou outro compositor agora por morar num lugar como São Paulo”, Felipe S., do Mombojó, de Recife Roger acha que nascer ou não em frente ao mar interfere decisivamente no jeito de encarar a vida. “Passei longos períodos no Rio e encontrava todo mundo na praia, no bar. As pessoas são mais afáveis e menos desconfiadas porque estão mais expostas, até fisicamente. São Paulo é mais neurótica”, afirma. “Nunca fiquei olhando pra praia e contemplando. A contemplação do paulista é mais interna. Você faz análise sociológica, antropológica, política. Essas diferenças ficam explícitas na expressão do artista.” Pernambucano que escolheu São Paulo para viver, Felipe S., da banda Mombojó, fecha com Roger: “Só depois de uns anos morando em uma cidade sem mar eu noto como isso influenciou meu jeito de ser”, diz. “Sou outro compositor por morar em um lugar como São Paulo.” Parceiro musical de Rita Lee (“a mais completa tradução” de São Paulo, segundo Caetano Veloso), Roberto de Carvalho injetou DNA carioca na música autenticamente paulistana que ela faz desde que começaram a parceria, em 1978. Nascido em Ipanema, tornou mais ensolarado, feminino e sexual o rock de Rita com seus acordes. “Rita e eu passávamos longas épocas à beira-mar, fosse no Rio, em Natal, na Jamaica, em Barbados”, lembra. “Nesses lugares, compúnhamos muito. E é assim até hoje. ‘Reza’, por exemplo, nós fizemos em Miami.” Baiana criada em Pernambuco e radicada em São Paulo, Karina Buhr lembra que compôs “Ciranda do incentivo”, de seu primeiro disco, na praia. Antes, tocou muitos anos num afoxé na Cantina Z4, colônia de pescadores em Olinda que fica em frente ao mar, “chegando peixe toda hora”. “Tem ciranda, candomblé, jogar flor no mar, dar um mergulho pra tirar as mazelas”, diz. Mais ou menos no mesmo período, fez vocais para a banda Eddie, que se autodenominava “do surf para o surf”. “De vez em quando, a gente fazia um tipo de retiro, em alguma praia, pra ensaiar, fazer música e surfar. Nunca surfei, embora seja uma das grandes vontades da vida. Quando eu ia começar, apareceram os tubarões.” “A barca” (Padre Zezinho) “Quatro semanas de amor” (Gary Col e Peter Udell – Versão: Carlos Colla) “Lenda das sereias, rainha do mar” (Vicente Mattos, Dionel e Arlindo Velloso) “Merengue Latino” (Ronaldo Silva) “Conto da areia” (Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento) “É doce morrer no mar” (Dorival Caymmi) “Cirandeiro” (canção folclórica) “O mar serenou” (Candeia) “Meus cabelos brancos” (Baracho) “Ciranda de Lia” (Baracho) “A praieira” (Chico Science) “Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi) “Cidade submersa” (Paulinho da Viola) “Lugar-comum” (João Donato e Gilberto Gil) “A cor amarela” (Caetano Veloso) “Sargaço mar” (Dorival Caymmi) “O mar” (Dorival Caymmi) “Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi) “Tarde em Itapuã” (Toquinho e Vinicius de Moraes) “A cor amarela” (Caetano Veloso) “De repente, Califórnia” (Lulu Santos e Nelson Motta) “Maresia” (Paulo Machado e Antonio Cicero) “Maritmo” (Adriana Calcanhotto) “As praias desertas” (Tom Jobim) “O mar” (Dorival Caymmi) “Quebra mar” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro) “Leãozinho” (Caetano Veloso) “Desaguar” (Mahmundi) suíte “História de pescadores” (Dorival Caymmi) “Tereza da praia” (Billy Blanco e Tom Jobim) “A novidade” (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna e Gilberto Gil) “Januária” (Chico Buarque) “Conto de areia” (Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento) “Festa de Rua” (Dorival Caymmi) “Coqueiro de Itapuã” (Dorival Caymmi) “Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi) “Ela vai pro mar” (Celso Fonseca e Ronaldo Bastos) “Mar de Copacabana” (Gilberto Gil) “Maritmo” (Adriana Calcanhotto) “O mar serenou” (Candeia) “Nós vamos invadir sua praia” (Roger Moreira) “De repente, Califórnia” (Lulu Santos e Nelson Motta) “Tarde em Itapuã” (Toquinho e Vinicius de Moraes) “Minha sereia” (Carlos Moura) “Garota de Ipanema” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) “As praias desertas” (Tom Jobim) “Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli) “Sábado em Copacabana” (Dorival Caymmi e Carlos Guinle) “Samba de verão” (Marcos Valle e Paulo Sergio Valle) “Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli) “Domingo azul do mar” (Tom Jobim e Newton Mendonça) “A praieira” (Chico Science) “Samba de verão” (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle) “Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)Desde que o samba é samba é assim: um barquinho, a areia, as ondas, as garotas de biquíni, o pôr do sol e a maresia inspirando clássicos da música brasileira, de qualquer tempo, em qualquer ritmo
10 músicos e especialistas indicam suas canções favoritas
Gaby Amarantos, cantora paraense
Me sinto em uma rede, deitada com meu filho e com familiares e amigos ao redor.
Clássico nas vozes de Luan e Vanessa, lembra adolescência.
Na voz de Marisa Monte, linda. Tenho forte ligação com sereias.
Minha favorita, tem minhas influências caribenhas e praieiras, pra mexer o corpo.
Na voz de Clara Nunes, deve estar em todas as listas. É uma poesia! Karina Buhr, atriz, cantora e compositora baiana, pernambucana e paulistana
Tão clássica que parece ter existido desde sempre. Triste e linda demais.
Isso pra mim também já nasceu junto com o mundo.
Nada consegue descrever o que sinto quando ouço Clara Nunes cantando isso.
Cantada pelas filhas dele, Dulce e Severina e também por Célia do Coco.
Criação do grande mestre cirandeiro, que nasceu em Nazaré da Mata.Leonardo Lichote, repórter e crítico do jornal O Globo
Ciranda sob o peso dos tambores e o groove da Nação Zumbi.
Inevitável Caymmi. Compreensão plena da atração que a praia exerce sobre nós.
Para lembrar a força devastadora do mar, do amor.
Na voz de Arnaldo Antunes, o oceano da canção ganha profundidade.
Esta é a praia hiper-real, a do verão carioca, de tons saturados.Adriana Calcanhotto, autora de uma trilogia (ainda incompleta) sobre o mar
Gosto das canções praieiras, mas também daquelas que são do fundo do mar.
“O mar quando quebra na praia é bonito.” Nada a declarar depois disso.
A história da minha vida: “Quem vem pra beira do mar/ Nunca mais quer voltar”.
Principalmente na versão da Bethânia, um samba-reggae com muita preguiça.
Uma pintura de Caetano, a menina preta de biquíni amarelo no verde da onda.
Amo “as ondas lambem minhas pernas”, imagem perfeita.
Petardo que gravei depois de ouvir a leitura do poema pelo próprio Cicero.
Estava deslumbrada com o brilho no mar de Angra que Mario Peixoto filmou.Alice Caymmi, cantora e neta de Dorival
Canção de amor que coloca a solidão da praia deserta como pano de fundo.
Simplesmente a música brasileira mais icônica sobre o mar e seus encantos.
Remete a um quadro impressionista. O mar como uma visão.
Não consigo ouvir sem querer ver meus amigos e dar uma volta no Arpoador.
Canção pós-praia. Principalmente se você tem um romance em mente.Felipe S., vocalista do Mombojó
Pela simplicidade e pelo título. Reúne todos os maiores temas de mar. Bruno Medina, tecladista do Los Hermanos
A que melhor retrata a essência pueril dos amores de verão.
A figura da sereia subvertida como um instrumento de crítica social.
“Até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela.” Sem mais.
Letra belíssima, refrão pra cantar gritando, de olhos fechados, com Clara Nunes.
Todas as músicas da lista deveriam ser dele, né? Esta é uma espécie de oração.Patricia Palumbo, radialista
A descrição da areia, e do vento no alto do coqueiral, é toda linda.
É totalmente minha cara. Preciso ir pra beira do mar pra voltar pro rumo.
Vejo a cena da mulher caminhando de maiô lilás e me dá uma nostalgia daquele Rio anos 50.
Uma declaração de amor como só Gil sabe fazer. Imagine alguém te entregar o mar!
Um passeio delicioso pela orla. Sempre que ouço me vejo tomando a brisa fresca. Pitty, roqueira baiana
Personagens constantes na obra de Clara Nunes: o mar, o pescador e a rainha das águas, Iemanjá.
A forma mais legal e bem-humorada de abordar a rixa (lenda?) que existia entre o rock paulista e o fluminense.
O arranjo e o timbre das guitarras trazem a sensação nítida de ondas.
Morei em Itapuã. Guardadas as proporções poéticas, a letra é fiel à sensação do lugar.
Ouvi muito na infância. Profundamente ligada a minha memória afetiva. Roberto Menescal, bossa-novista
Um doce balanço, caminho do mar.
Elas continuam esperando por nós dois, sempre.
Rio é mar, é terno se fazer amar.
Pra passear à beira-mar: Copacabana.
Ela vem, sempre tem esse mar no olhar.Tárik de Souza, jornalista e pesquisador
É sal, é sol, é sul. É isso!
Uma pérola reluzente injustamente esquecida.
Caranguejos com antenas e nadadeiras.
Dois surfistas do Arpoador em temperatura máxima.
O criador do gênero “canções praieiras” não poderia ser mais exato.
O medo mora dentro
Marcos Vilas Boas O publicitário Caio Monteiro, 22 anos, se sente um prisioneiro do condomínio de classe média onde mora, em Perdizes, zona oeste de São Paulo. “Quando chego, levo um tempo convencendo os seguranças de que sou morador”, conta. Precisa digitar a senha de seu apartamento para fazer o elevador funcionar; se esquece e aperta só o botão do andar, o que acontece “pelo menos três vezes por semana”, fica preso na cabine até responder satisfatoriamente a um questionário pelo interfone. A última etapa, a leitura biométrica das digitais, às vezes falha. “O equipamento não lê direito, o alarme dispara e tem que vir alguém ver se eu sou eu mesmo.” Assaltado sete vezes, uma delas à luz do dia, ele não considera os sistemas de segurança desnecessários. Só acha a coisa toda pouco prática e desconfia dos critérios. “Outro dia cheguei com um amigo de SUV e eles abriram no ato.” Também se ressente do clima de hostilidade gratuita entre moradores. “Fui criado no interior, brincando na rua. Conhecia todos os vizinhos e me sentia seguro. Hoje, não posso nem pedir uma xícara de açúcar para o cara do andar de cima. Não sei a senha do apartamento dele.” Marcos Vilas Boas A sensação de insegurança nas cidades brasileiras é movida a índices e histórias assustadoras de violência. São Paulo, em particular, viu os assassinatos aumentarem 20% no primeiro semestre de 2012, e registrou uma onda de crimes histórica no fim do ano. Isso abre espaço para medidas radicais de vigilância e para a febre dos condomínios fechados de alto padrão, com interiores monitorados, muros intransponíveis e seguranças com botões de pânico. Enquanto as iniciativas para incrementar os espaços públicos chamam a atenção em cidades americanas e europeias, a exemplo da High Line, viaduto nova-iorquino transformado em parque suspenso, por aqui as ruas vão sendo abandonadas e o convívio escasseia, numa cena que lembra a melancólica “City with no children”, da banda canadense Arcade Fire: “Sinto-me vivendo em uma cidade sem crianças/ Em um jardim arruinado por um bilionário que mora numa prisão.” O clima que favorece o recrudescimento da paranoia urbana tem a ver com um fenômeno global: a obsessão pela segurança. “Até o final do século 20, vivia-se um otimismo em relação ao futuro da humanidade, ao desenvolvimento tecnológico”, diz o sociólogo e analista de tendências Dario Caldas, do Observatório de Sinais, em São Paulo. “Por uma série de fatores, incluindo o 11 de setembro, esse quadro mudou. O medo é um dado do século 21.” "Se você coloca um muro de 4 metros na sua casa antes que qualquer coisa aconteça, o que está dizendo é que não gosta do mundo e que não tem a menor confiança na sociedade brasileira.” No Brasil, a corrida da classe média para os “abrigos” reflete uma descrença no Estado, que tem como atributo garantir a segurança. “Na falta de políticas públicas eficazes de combate ao crime, a cidade está sendo esvaziada e trancafiada em pequenas fortalezas”, diz Miguel Leme Brizola Neto, do Grupo Verzani & Sandrini, uma das maiores empresas de segurança particular de São Paulo. Cada vez mais procurados, seus equipamentos e equipes encarecem em até 10% condomínios já altíssimos, entre R$ 2 mil e R$ 5 mil mensais. Marcos Vilas Boas Assim como esse tipo de aparato é privilégio de poucos, a insegurança urbana tem ligação com a desigualdade social: apesar das conquistas recentes, que incluem o advento da “nova classe média”, com 40 milhões de pessoas que passaram a ter conta no banco, o Brasil continua em 12º lugar no ranking mundial dos países com os maiores desníveis de renda. Pode ser que estejamos caminhando para uma igualdade maior – que, no futuro, pode criar uma cidade com menos crime. Mas, por ora, a questão da segurança não pode ser nem ignorada nem tratada com truculência. A visão é do urbanista Cândido Malta Campos Filho, professor emérito da FAU da USP e ex-secretário do Planejamento da cidade. Um dos responsáveis pela lei que estabelece limites para a altura de prédios em São Paulo, ele acha que é preciso coibir a especulação imobiliária – a cidade tem um limite para comportar o adensamento populacional que vem com os prédios – e minimizar medidas agressivas de segurança. “O problema da insegurança existe. Mas há um exagero, uma certa paranoia”, afirma. Vivendo na mesma casa com paredes de vidro desde 1967, há alguns meses ele viu o sistema que criou para proteger a família – um muro de 2 metros e um trio de guardas de rua – falhar pela primeira vez em mais de 40 anos. “Agora temos câmeras e sensor de presença, mas continuamos andando na rua e tendo uma vida comunitária.” O urbanismo que reflete o clima de insegurança, ele alerta, também pode exacerbá-lo. “A própria polícia diz que quem tem muro muito alto acaba atraindo o ladrão. Por isso, defendo e pratico a moderação: fazer o mínimo necessário pela segurança, para não agredir a sociedade e não se agredir. Porque a pessoa que está enclausurada numa muralha está se agredindo. Ela se aprisionou.” Desconfiança A sensação de aprisionamento entre janelas gradeadas, espaços estrangulados e muros altíssimos é um dos temas principais de O som ao redor (2011), o premiado longa-metragem de estreia do cineasta pernambucano Kleber Mendoça Filho. A feia “estética da segurança” que vai dominando as cidades brasileiras fascina o diretor. Desde os anos 90 ele se inspira nos bairros de classe média transformados pelo avanço descontrolado da especulação imobiliária, principalmente Setúbal, no Recife, onde mora. “Para mim, esses obstáculos – grades, muros – têm um significado muito rico. São superagressivos, uma demonstração física e arquitetônica de desconfiança em relação ao outro. Se você coloca um muro de 4 metros na sua casa antes que qualquer coisa aconteça, o que está dizendo é que não gosta do mundo e que não tem a menor confiança na sociedade brasileira.” Além de não gerar tranquilidade necessariamente, a atitude não colabora “para uma ideia mais humana de cidade”. Claudio Lacerda Dois modelos de vida diferentes no mesmo bairro em São Paulo Claudio Lacerda Dois modelos de vida diferentes no mesmo bairro em São Paulo Muros altos e grades são lamentáveis, mas uma tendência sem volta, acredita o cineasta Fernando Meirelles. “Numa cidade grande e impessoal como São Paulo, acho compreensível que se criem comunidades menores”. Adepto da “slow-life” (“Me recuso a viver como se tivesse de tirar o pai da forca todo dia”), o diretor de Cidade de Deus também criou sua própria comunidade. Só que sem muros: há 20 anos, divide com amigos um sítio perto de São Paulo. “A ideia era termos um espaço maior para morar e criar nossos filhos mais soltos”, conta. Uma cerca separa a propriedade do entorno, e não há nada além de verde entre as casas. No único acesso, uma rua sem saída, uma guarita com segurança serve de portaria. “Nunca dei muita bola para segurança. Nossa cerca é baixa, minha casa tem dez portas que dão para fora. Nunca houve incidente”. O relato reforça o argumento daqueles que acham a discrição mais eficaz do que a fortificação, quando se trata de segurança. “Parecer rico é atrair predadores”, acredita o psicanalista carioca Francisco Daudt. “O mais rico dos meus clientes anda de metrô, odeia ser fotografado e desfruta de uma bela vida de perfil baixo.” Ele vai mais longe: “Auto-estima elevada é fonte de segurança, e se traduz numa linguagem corporal que transmite uma mensagem de força. Claro, não existem garantias para nada no mundo, mas as chances de uma pessoa segura de si não ser importunada aumentam muito.” A relatividade da eficácia dos mecanismos de segurança alardeados pelos condomínios já foi objeto da fina ironia da dupla de arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan. O Muromóvel, um paredão de tijolo, espetos e cacos de vidro capaz de autoajustar sua altura aos índices de violência da cidade, foi uma das invenções que apresentaram na exposição Happyland Vol. 2, realizada no Museu da Casa Brasileira há quase dez anos. Outra era o Kit Assalto, uma mala com objetos de desejo falsificados, como relógio Rolex e cigarreira Louis Vuitton, para engambelar ladrões. Ocupar Para além de muros e cercas, traços do próprio urbanismo brasileiro contribuem para esvaziar as ruas e aumentar a sensação de insegurança. O principal é um pensamento que prioriza o carro, e nunca o pedestre. “No centro de São Paulo, as calçadas estreitas, as grandes vias e os semáforos que abrem e fecham rápido demais expulsam as pessoas da rua”, diz o arquiteto e crítico Guilherme Wisnik. O atraso histórico dos transportes coletivos, que têm potencial para reduzir o número de veículos na rua e aproximar cidadãos e cidade, piora essa cena. Assim como o boom dos shoppings, tidos como mais seguros que o comércio de rua, outro elemento que traz vida às vias públicas. Wendy Content/Alamy/Other Images A High Line de Nova York transformada em parque Até que esses planos mudem, a ideia de reocupar o espaço urbano e reaver o convívio “de rua” surge como alternativa para reverter situações de abandono e insegurança. “A solução está na vida comunitária”, diz João Sette Whitaker, professor das faculdades de arquitetura da USP e do Mackenzie. Para mostrar que há uma “indústria do medo” que desestimula esse convívio, ele fez uma experiência: convocou duas alunas para testar a “sensação de segurança” do Morumbi, na zona oeste, e da rua Augusta, tida como perigosa, perto do centro. As meninas sentiram mais medo nas ruas muradas do Morumbi, desertas às 19 horas, do que entre as prostitutas, traficantes e frequentadores da noite que lotavam a Augusta às 23 horas. “Até o final do século 20, vivia-se um otimismo em relação ao futuro da humanidade, o desenvolvimento tecnológico. Por uma série de motivos, incluindo o 11 de setembro, isso mudou. O medo é o dado do século 21” A ocupação do “baixo Augusta”, área de prostituição tomada por estudantes e boêmios de classe média nos últimos anos, é um exemplo de reapropriação da cidade. Assim como a explosão da cultura da bicicleta e os protestos públicos de todo tipo – em 2011, São Paulo parou mais de 1000 vezes para deixar passar as manifestações, algo como três vezes ao dia. “As marchas, as festas no Minhocão, a Virada Cultural e o churrascão para marcar a polêmica sobre o metrô de Higienópolis são fatos positivos nesse cenário”, diz Dario Caldas. “A bicicultura, com gente usando o veículo para ir ao trabalho e famílias inteiras pedalando juntas, é muito importante em uma cidade sem espaços naturalmente democratizantes”. Um mecanismo que ajudaria a melhorar a segurança na cidade pela ocupação seria tornar públicos os térreos de todos os seus edifícios, sugere Ciro Pirondi, professor da escola da Cidade. “É o que já acontece em Brasília”, ele diz. Outro é reciclar espaços urbanos degradados, como fez o arquiteto Guto Requena, colunista da Folha de S. Paulo, ao reformar um apartamento na chamada “ilha da Paulista”, uma sobra das obras viárias dos anos 1950 e 1960 no cruzamento das avenidas Paulista e Consolação. “Tem muita gente no meu quarteirão querendo fechar a rua, o que é ilegal, e colocar segurança, porque ali tem muito skatista, morador de rua. Mas negar a cidade não é a solução. A perseguição aos skatistas, por exemplo, é absurda. Eles são um dos grupos mais engajados na ocupação da cidade. E ocupar é bom.” Fora do Eixo Festival 'Existe amor em SP'A obsessão por segurança, um fenômeno global, encontra sua expressão mais eloquente nas cidades brasileiras, que abrigam gente cada vez mais isolada – e insegura. Na contramão, há quem ache que a solução está nos movimentos que tentam reocupar a cidade
Viajando em campo minado
Arquivo Pessoal
Tanques no meio das flores em Bamian, Afeganistão, em 2010: país vive em guerra desde 1980
Ex-operador do mercado financeiro, o apresentador dos programas A vida que eu queria (Canal Off) e Não conta lá em casa (Multishow) revela a tensão de surfar no Oriente Médio e as lições de segurança que aprendeu trabalhando em ÁREAS de conflito
A sensação de embarcar numa surf trip para Israel é estranha. Como ávido interessado em assuntos geopolíticos, jamais pensei que meu primeiro voo a Telaviv seria em busca de um swell... Mas assim foi e, após cinco meses monitorando o flat no Mediterrâneo, enfim, uma boa previsão. Mesmo tendo percorrido meio mundo árabe, estava naquele mês com um passaporte novo em folha, eliminando qualquer indício de eventual influência moura em minha missão. (Por razões conhecidas, esse requisito é importante para admissão no pequeno e controverso Estado judeu.)
Surfamos por toda a costa israelense e por toda parte sentimos apenas cordialidade. Preocupação sobre segurança vimos no aeroporto, com procedimentos bem constrangedores, aliás. O diretor do programa A vida que eu queria (canal Off), Rico Faissol, passou por um aperto. Seu sobrenome árabe demandou explicações. No fundo, acho que nem Rico nem os surfistas que viajam pelo mundo atrás de boas ondas registradas pelo programa (eu e Marcelo Trekinho) eram exatamente o tipo de visitantes esperados por ali.
Viajar atrás de ondas é fundamentalmente um prazer. Acredito que fomos ao Oriente Médio confirmando a velha máxima de que “o homem é escravo de seus hábitos”, e há quatro anos cultivo o hábito de não desgrudar os olhos daquela região. Isso por conta de meu outro programa de TV, o Não conta lá em casa, do Multishow, com outros bons amigos. Nesse projeto foram quatro anos circulando por países conturbados, com o intuito de superar a desinformação sobre suas realidades. Nele, passamos alguns bocados, sem dúvida. O hotel que ficamos em Bagdá explodiu alguns meses depois da nossa visita. Ficamos atolados no deserto na Somália. Perdidos na estrada no interior do Afeganistão. Até que, finalmente, decidimos que era hora de nos prepararmos melhor.
Voamos então até Ravenna, na Itália, onde o guru da segurança Jim Wagner ministraria mais um de seus cursos especiais. Wagner é um americano obcecado por segurança pessoal, mas o que o diferencia é a autoridade formal de causa. Ex-carcereiro penitenciário na Califórnia, ex-membro da Swat, ex-agente federal à paisana em aviões comerciais, ex-segurança de celebridades e ex-consultor de Hollywood sobre o assunto. Bem, ao menos tudo isso é o que consta em seu website. O que sabíamos era que o Morgan Spurlock havia treinado com ele no início de seu ótimo filme (e livro) Onde está Osama Bin Laden?.
O que mais nos valeu foi o aprendizado real sobre como proceder em situações extremas. De que outra forma descobriríamos que uma luta pra valer com facas dura, no máximo, dez segundos? Que é melhor correr em diagonal e zigue-zague quando estivermos sob fogo de algum atirador num massacre? Que, numa luta de vida ou morte, é sempre melhor mirar nos olhos e nos joelhos do oponente? Entre outras lições que esperamos nunca precisar usar na vida.
"No curso do guru de segurança Jim Wagner, aprendemos que é melhor correr em diagonal quando estivermos sob fogo, entre outras lições que esperamos nunca precisar usar."
Evidentemente, o treinamento de Wagner falhava em reproduzir a adrenalina de situações extremas – mas, bem, qualquer treinamento é assim. Foram cinco dias de exaustão dentro de uma academia de polícia, ao fim dos quais me convenci de duas coisas: 1) a fama de metrossexuais dos italianos não é de todo falsa, afinal até no vestiário masculino dos policiais encontramos vários secadores de cabelo;
2) havíamos diminuído nossas chances de morrer durante a próxima visita a um país em guerra. Ou ao menos em tese. E, como diz uma famosa expressão do mundo do surf, o que importa é o feeling.
FIM DO MUNDO
Quando o assunto é segurança mundial, o feeling não é exatamente de euforia. Alguns analistas chegam a vislumbrar uma terceira guerra mundial no futuro caso a União Europeia se desmantele no momento atual. Pessoalmente, não creio nisso – talvez pela minha índole sempre otimista. Sei que muitos pensadores ilustres gastaram muitas linhas dissertando sobre as razões de o mundo jamais poder se tornar um lugar seguro, e os leio com grande interesse.
Na década de 1930, contexto de pós-Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações propôs aos maiores intelectuais e cientistas da época um desafio até então inédito. Eles deveriam escrever uns aos outros de forma a cruzar conhecimento e discutir temas e soluções para a humanidade. Einstein escolheu Freud. Einstein, um otimista assumido, perguntou se pelos caminhos do conhecimento psicanalítico haveria indícios para supormos que um dia um mundo sem guerras seria possível. Freud foi categórico e respondeu que não, num belo resumo sobre a psique humana versus a organização das sociedades. Desapontado, Einstein insistiu: “Mas nem mesmo se alcançarmos a igualdade plena de direitos e oportunidades entre todos os homens?”. Freud devolveu: “Acho que não. Nem mesmo assim seria possível”.
Não há necessidade de questionar Freud. O que todos nós sabemos, com segurança, é que estar vivo nada tem a ver com estar seguro.
Lições de segurança
Um menino assustado se escora num poste para tentar se proteger do marmanjo que tenta tirar vantagem com seu tamanho. Cadernos e canetas no chão, o grandalhão mostra suas garras. Em seguida, humilhado, o menor aparece sentado na sarjeta, sujeito à imposição do colega que conseguiu impor sua “superioridade”. Essa sequência do que hoje é conhecido como bullying nada tem de original. Se repete diariamente em escolas, escritórios e no dia a dia de milhões de pessoas de qualquer lugar do planeta desde que o mundo é mundo – e, segundo relatório da National Association of School Psychologists, faz com que 160 mil crianças faltem à escola todos os dias nos Estados Unidos por medo ou insegurança diante dos bullies. Em casos mais extremos, algumas reagem com violência, como nos mostram os massacres a mão armada cometidos com cada vez mais frequência em escolas até no Brasil. Junto da saga do menino abusado vem o seguinte texto: “Proteja seu filho contra as torturas da inferioridade. Não deixe que ele entre na luta pela vida em condições desiguais. Sacrifique tudo, mas não deixe que seu filho seja humilhado, pois tais impressões refletem-se na vida adulta”. Parece até propaganda de livro de autoajuda. No fundo, é: trata-se de Introdução ao jiu-jítsu, publicado em 1948 pela editora Pongetti, de autoria de Carlos Gracie, que indica a prática dessa arte marcial para desenvolver a autoconfiança, aprender a se defender e transformar a vida de pessoas. “O jiu-jítsu é de defesa pessoal. Você só adquire autoconfiança quando acredita em si próprio. Qualquer sujeito que aprende fica mais tolerante, porque passa a saber que não apanha”, comentou à Trip #58 Hélio Gracie, irmão 11 anos mais novo e discípulo mais bem-sucedido de Carlos, responsável por trazer de Belém para o Rio de Janeiro na década de 1920 a luta aprendida com o japonês Misuyo Esai Maeda, o Conde Koma, e que hoje tem milhões de praticantes em todo o mundo. O sucesso dos irmãos Gracie, que em média tinham pouco mais de 1,70 metro e 60 quilos, diante de lutadores de boxe, capoeira, caratê e luta livre, com o dobro do peso e tamanho deles, atraiu a atenção da mídia e do público carioca no fim dos anos 1920. “Se tornaram celebridades por serem franzinos, jovens, parecerem europeus e não terem perfil de lutador”, conta Reila Gracie, filha e biógrafa de Carlos, autora de Carlos Gracie, o criador de uma dinastia (2008, Editora Record). Pouco a pouco, a alta sociedade carioca foi atrás da academia de Carlos para aprender os segredos daquela luta que colocava em condições de igualdade – se não de vantagem – rapazes franzinos diante de brutamontes musculosos. Artigo de jornal sobre João Alberto Barreto e a Academia Gracie A lista de alunos famosos chama a atenção. Entre eles, o ex-presidente militar João Figueiredo, o ex-ministro militar Mário Andreazza, jornalistas como Roberto Marinho, Assis Chateaubriand, Samuel Wainer e Carlos Lacerda, o radialista Flavio Cavalcanti, o cantor Nelson Gonçalves, o playboy Jorginho Guinle e o arquiteto Oscar Niemeyer, além de um sem-número de empresários e executivos. “Tive muitas aulas com eles. Gostava muito daquele ambiente”, lembrou Niemeyer em raro depoimento sobre o jiu-jítsu para o programa Sensei SporTV, em 2009, quando faleceu Hélio. “Tive pelo menos um ano de aulas. Meu pai mandou fazer um tatame para a gente. Carlos fingia que perdia, e eu ficava entusiasmado com aqueles golpes todos, achava o máximo”, contou Guinle, em depoimento publicado no livro de Reila. Atualmente, entre os praticantes mais notórios estão Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal, o prefeito de Manaus e ex-senador Arthur Virgílio e os atores Cauã Reymond e Wagner Moura. Alavanca Pode soar estranho sugerir o jiu-jítsu para ajudar a resolver problemas de autoconfiança e autoestima em tempos de combates violentos transmitidos pela televisão aberta e relatos de violência gratuita que pipocam diariamente no noticiário. “Muito antes do jiu-jítsu sempre houve covardes. Isso não é arte marcial, é índole. Se você não controla seu próprio instinto, perde pro seu oponente e na vida. Através da eficiência física e da disciplina, fui capaz de formar pessoas mais equilibradas”, disse Rickson Gracie, filho de Hélio e um dos maiores nomes do UFC, à Trip #163. Exemplo disso é o ator Cauã Reymond. Ele atribui ao jiu-jítsu uma mudança drástica em sua vida. Desde que começou a praticar o esporte, aos 12 anos, ele se diz uma pessoa mais segura. “Tenho uma facilidade em me focar que vejo que outros colegas não têm. Ganhei autoconfiança, autoestima e determinação. O jiu-jítsu te dá uma certeza e uma segurança de que você não precisa dar o passo adiante”, conta o global, que em seu currículo tem dois títulos brasileiros na modalidade. Nas aulas dadas por Carlos e Hélio, os alunos não eram avaliados apenas pela execução dos golpes, mas também por quesitos como coragem, disciplina, respeito e educação. “O Hélio não aceitava qualquer atitude covarde. Tínhamos uma orientação ética”, conta o psicólogo João Alberto Barreto, aluno e depois assistente de Hélio, um dos poucos no mundo que são donos de uma faixa vermelha na luta, a mais alta graduação do jiu-jítsu, dada apenas aos graduados diretamente com os velhos Gracie. “Hoje em dia o jiu-jítsu está banalizado por conta do MMA. Eu, enquanto professor, não formo lutadores, mas sim ajudo a transformar pessoas”, afirma o publicitário aposentado e professor de jiu-jítsu Flavio Behring, pupilo de Hélio e Barreto, outro faixa vermelha, que sofria de asma e mudou de vida desde que passou a viver na academia Gracie. “No MMA, os lutadores são violentos, querem agredir o adversário. Derrubam com socos e pontapés, enquanto no jiu-jítsu ensinamos as técnicas para fazer isso”, completa Barreto. Filho mais velho de Hélio, Rorion, 61 anos, levou o jiu-jítsu brasileiro para os Estados Unidos na década de 70 e mantém um museu com o maior acervo sobre a história da família, em Torrance, Califórnia. Em sua academia, ensinou a luta a gente famosa como os atores Mel Gibson e Nicolas Cage, e o jogador de basquete Shaquille O’Neal. Mas é pelas histórias de pessoas comuns que passaram por sua academia que ele gosta de contar o quanto o jiu-jítsu pode transformar uma pessoa. “Tive muitos alunos que passaram nas mãos de psicólogos e não conseguiram se resolver. Vieram aqui e a gente ajudou.” Ele cita o caso de uma aluna policial que tinha pavor de ser atacada por facas e tinha pesadelos com isso. Depois de aprender a lutar, até nos sonhos ela conseguia se defender. “Isso afeta a psique da pessoa. Sua atitude muda, sua personalidade muda. Você se sente mais confiante e isso mexe com tudo”, diz. Rorion usa o próprio pai como exemplo. “Ele sofria de vertigem e tonturas. Só de subir escadas correndo ele passava mal”, conta. Desautorizado a praticar esportes, ele passou a assimilar a técnica sem colocar a mão na massa, apenas assistindo às aulas do irmão mais velho. Quando isso finalmente aconteceu, reparou que precisaria adaptar o estilo ensinado por Carlos para sua realidade. Sem força, desenvolveu um estilo de luta que consiste no uso de alavancas com o corpo para aplicar os golpes. Uma vez derrubado, o confronto é definido pela imobilização, quando não por sufocamento. “Lutar não significa bater ou apanhar. É possível ganhar de todo mundo com técnica”, disse Hélio à Trip em 2002.Muito antes de criar heróis do esporte, mudar a vida de Cauã Reymond e impressionar até Chuck Norris (!), o jiu-jítsu surgiu como uma técnica de defesa pessoal para “jovens franzinos sem perfil de lutador”. E acabou fazendo entusiastas entre gente como Oscar Niemeyer e Carlos Lacerda
foto de Rorion Gracie com o aluno Chuck Norris (de pé), Rickson Gracie (ajoelhado) e alguns praticantes célebres do jiu-jítsu em seus primórdios
Veja abaixo depoimentos de grandes figuras que integraram a academia dos Gracie.
“Meu pai mandou fazer um tatame para a gente. Carlos Gracie fingia que perdia, e eu ficava entusiasmado com aqueles golpes todos, achava o máximo. Tive pelo menos um ano de aulas. Era uma luta extraordinária. Naquele tempo não se falava em defesa pessoal, e meu pai virou um entusiasta, embora não tenha praticado.” Jorge Guinle, playboy carioca e ex-herdeiro do Copacabana Palace, em depoimento no livro Carlos Gracie, o criador de uma dinastia
“Como era faixa preta de judô, achei que podia treinar com eles. Fui para o chão com Rickson e foi como se nunca tivesse treinado. Depois treinei com Royce e o senhor Gracie [Hélio]. Ele me disse: ‘Chuck, bata em mim’. Só me lembro de puxar meu punho para trás. Fui sufocado, fiquei inconsciente, mal conseguia engolir. Ele pediu desculpas pela força e disse que podia me tornar um grande lutador de jiu-jítsu.” Chuck Norris, ator e lutador, em depoimento ao site MMANation.com
“Tive muitas aulas com o Hélio, com o George, com o Carlos. Era um grupo muito bom, muito fraternal, as aulas eram muito divertidas, faziam muito bem. Recomendo a toda a garotada praticar um pouco de jiu-jítsu.” Oscar Niemeyer, no programa Sensei SporTV
“Eu era um nerd. Jogava videogame o dia todo. meu pai quis que eu praticasse esporte. Comecei com 12 anos e virou quase religião. Ia todo dia à academia, tinha vida de atleta. Isso mudou tudo. Ganhei confiança, autoestima, foco. Hoje me sinto mais seguro. O jiu-jítsu me ensinou a segurança de que você não precisa dar um passo adiante.” Cauã Reymond, ator, faixa preta e bicampeão brasileiro de jiu-jítsu
Conexão morro asfalto
Rio de Janeiro nunca tinha visto coisa igual. Vestidos para festa, artistas do calibre de Christiane Torloni, Fabio Assunção e Renata Sorrah subiram a favela preparados para pisar no tapete vermelho. Era uma quarta-feira, 18 de abril de 2001. Naquele tempo, a bala corria no Morro do Vidigal, comunidade erguida em uma encosta radicalmente íngreme da zona sul – e zelosamente dominada por criminosos. O adensamento de casas improvisadas se deu, barraco a barraco, até invadir, na marra, o fundo dos cartões-postais mais vendidos nas bancas do Leblon. As lajes de cimento eram o terraço dos traficantes. As miras dos fuzis eram os binóculos para uma vista arrebatadora – inclusive contra quem ousasse botar o pé ali sem autorização, como a polícia. Eram tempos de divisão social escabrosa, apartheid social entre morro e asfalto. Mas o ator Caio Blat recebia, tranquilão, seus colegas famosos para a estreia de sua peça Êxtase, montada em um casarão do grupo teatral Nós do Morro. No meio do gueto, à noite, em uma região que escapava entre os dedos do poder público. O bas-fond chamou a atenção. Os bandidos foram avisados. “Eles gostaram”, lembra Blat, aos risos, mais de uma década depois. “Tanto que foram receber o pessoal de fuzil na mão. Fizeram escolta armada, como batedores, para as vans que aluguei para trazer amigos”, conta o Fernando da novela Lado a lado. Ao levar a peça (e os colegas) para o morro, o paulistano Blat acabou se transformando numa espécie de precursor de um movimento que, espera-se, costure décadas de fissura entre classes sociais no Rio de Janeiro. Atualmente, uma maré sem data para secar varre as comunidades, impulsionada pela força policial que, dentro do projeto de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), expulsou delas os vendedores de drogas e seus armamentos de guerra contrabandeados. Com essa nova sensação de segurança, as empresas começam a subir as escadarias labirínticas para conhecer consumidores até então isolados. Os caminhões de coleta de lixo já podem entrar para limpar os espaços. Os gatos de luz e água estão sendo erradicados. Até os médicos conseguem chegar aos postos de saúde sem o risco iminente de cruzar com uma bala perdida. “Queremos fazer coquetéis na laje, levar atores bombados e a imprensa, acabar com essa história de só fazer lançamento na Barra”, diz Caio Blat O maior estandarte desse processo é o chamado teleférico do Complexo do Alemão, antigo QG do Comando Vermelho. É um marco porque foi a primeira obra de infraestrutura que o governo fez chegar até o povo carente. Por R$ 1, qualquer cidadão circula por cima de 13 favelas. O meio de transporte foi fundamental para ajudar moradores e interessados a chegar de forma menos insalubre aos becos, antes acessíveis somente após longas e suadas caminhadas. O projeto, inspirado na experiência de Medellín, na Colômbia, virou programa turístico. Estrangeiros cruzam a periferia para ver de perto, e do alto, um mar de casas irregulares. O arquiteto das favelas Numa coincidência pitoresca, a obra foi desenhada por um dos grandes amigos de Blat, o argentino Jorge Mario Jáuregui. Conhecido como “o arquiteto das favelas”, por ser autor de vários projetos urbanísticos em comunidades cariocas, ele é outro personagem importante desse processo de aproximação morro-asfalto. Conheceu o ator quando Caio tentava achar alguém intrépido o suficiente para projetar uma casa para ele em um paredão verde em Itanhangá. “Esperava ouvir que meu sonho era impossível, mas acabei encontrando um maluco que se apaixonou pela empreitada e me proibiu de desistir da obra. E fez a casa em que moro hoje”, conta o ator. Para Jáuregui, o Rio de Janeiro vive um momento ímpar: o desarmamento, acredita, ampliou os limites da cidade, jogando comunidades inteiras no colo dos governantes e obrigando-os a começar a trabalhar por sua urbanização: “O teleférico, por exemplo, não pode ser pensado fora de uma política de urbanização geral, uma reorganização social. Isso inclui aspectos físicos, sociais, ecológicos, de segurança comunitária, além da problemática do cidadão contemporâneo, como relações de trabalho, amor e família”, afirma. Atualmente, Caio e Jáuregui estão unidos em uma nova aventura. Decidiram montar um cinema na Rocinha. Já têm apoio da prefeitura e de patrocinadores, mas querem montar uma unidade que se banque, cobrando preços populares. Vão emprestar a ideia de Adailton Medeiros, criador do Ponto Cine, em Guadalupe, sala igualmente instalada num bolsão de pobreza, na zona norte, mas que hoje recebe prêmios por ter a maior taxa de ocupação do cinema nacional. “É um negócio, precisa ser sustentável. Eu entro com a parte artística, e o Jorge sobe as paredes”, conta Caio. “Vamos montar um espaço intermediário, que o pessoal do asfalto e do morro possa frequentar. Queremos fazer coquetéis na laje, levar atores bombados e a imprensa. Queremos acabar com essa história de só fazer pré-estreia na Barra.” Be Bope Outro protagonista dessa remixagem antropológica que ecoa pelo Rio é Bob Nadkarni. Formado em belas-artes em Londres, ele trabalhou como escultor dos cenários de 2001, uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, antes de cansar da vida na Inglaterra e pegar uma embarcação para o Equador, em 1972. O navio quebrou, e Nadkarni parou em Salvador. Era o primeiro dia de Carnaval. Desceu do barco sem saber direito onde estava. Em 25 minutos, começou a namorar uma mulata. Perdeu o embarque – e as roupas. Tempos depois, chegou ao Rio, mas, ilegal, acabou deportado em meados da década de 1970. Iniciou a carreira jornalística na Inglaterra, estratégia para regressar ao Rio. Deu certo. Nadkarni se instalou no Morro Tavares Bastos, no Catete, em 1981, quando o terreno ainda era uma fazenda com 400 pessoas. Usou sua influência como correspondente da UPI e da BBC para convencer o governo a abrir o primeiro e atual QG do Bope, a temida tropa de elite fluminense, num antigo esqueleto de um cassino da família Guinle, no pé do morro. Na base da conversa, pacificou a primeira favela da cidade, bem antes das UPPs. “Nunca tive medo de traficantes”, garante. “São covardes. Passam o dia paquerando e moram na casa da mamãe.” Nas noites de jazz do The Maze, a cena impressiona: gringos e playboys se enfileiram para subir um morro que, há alguns anos, era frequentado apenas por moradores e viciados Hoje, ele é dono do The Maze, misto de ateliê, boate e pousada que ocupa uma casa de três andares no mirante da favela. Já recebeu como hóspedes altas personalidades internacionais, como a atriz Charlotte Rampling e o cineasta Alan Parker. Mas sua maior cria foi a festa Jazz at The Maze, festa que toda primeira sexta-feira do mês leva um séquito de turistas e locais para shows de jazz na casa. Logo na entrada do morro, a cena impressiona. Europeus e playboys se enfileiram para subir uma comunidade que, até há pouco, era frequentada apenas por moradores e viciados. Pelas vielas, os cabelos louros das europeias escapavam dos capacetes dos mototáxis. Na edição em que a Trip esteve presente, no começo deste ano, a balada registrou recorde de público: 800 pessoas. “Fiz apenas o básico. Ignorei os bandidos, abri um negócio e hoje vejo minha festa citada como um dos mais interessantes pontos de jazz do mundo”, orgulha-se Nadkarni. Capitalismo-favela “As UPPs não significam uma cura radical, mas um grande começo”, acredita a atriz Mariana Ximenes, velha frequentadora do morro. “Agora vêm as medidas de integração social. Investimento em saúde, cultura e educação.” O coordenador da ONG O Rio Pede Paz, Cacau de Brito, concorda com a atriz: “É porque o problema dos morros não se resume às questões de segurança pública. Tudo melhorou, é verdade, mas ainda falta emprego, saneamento, muita coisa a ser resolvida. Há corrupção policial mesmo em morro pacificado. E o tráfico vai continuar, menos chamativo, claro, enquanto houver demanda. São questões maiores, mundiais. Há um problema sério, em Jacarepaguá e no Campo Grande, são as milícias que tomaram conta do espaço deixado pelos traficantes. E surgem denúncias da ligação dos milicianos com políticos”. Uma experiência muito interessante de levar a economia ao morro ocorre em Santa Marta, Botafogo. Em meio aos barracos erguidos uns em cima dos outros, fica uma sucursal da modernosa agência de publicidade NBS (No Bullshit ou “sem papo-furado”). Lá, em uma sala alugada e decorada como um escritório em Ipanema, uma equipe de jovens publicitários iniciou um trabalho para tentar ensinar grandes empresas a investir nas favelas. Tudo começou quando uma pesquisa corriqueira, tradicional nesse ramo, apontou uma revelação curiosa. Ao perguntarem aos cariocas qual sua maior fonte de otimismo, a pacificação superou todas as respostas – ultrapassando itens como o pré-sal ou a própria beleza da Cidade Maravilhosa. Naquele momento, um sinal de alerta disparou. “Descobrimos que havia uma revolução acontecendo. Uma grande transformação. E que precisaríamos agir”, explica André Lima, diretor responsável pela empreitada. Desde então, ele passou a levar clientes para mesasredondas em várias comunidades pacificadas. O grupo participou de reuniões de capitães de UPPs, e abriu o salão no morro para os moradores fazerem suas reuniões. “Fomos escutar o que toda essa gente tinha a dizer.” Foi assim que, em 2012, a agência conseguiu apoio para o baile anual de debutantes do Morro da Providência, que havia sido criado pelo comandante da UPP dois anos antes. Uma edição da festa chegou a ser organizada no Museu Histórico Nacional, com direito a carruagem com cavalos para trazer as garotas – que dançaram valsa com policiais com farda de gala. Manchada pela chaga da gravidez precoce e da violência doméstica, a favela foi usada por anos como moradia de segundas famílias de muitos homens, trabalhadores que passavam pela vizinha Central do Brasil – e criavam lares paralelos. “É uma situação muito dramática”, resume o diretor da NBS. A ideia do baile “diferente” veio da agência, em resposta a uma demanda dos jovens da comunidade, que sentiam falta de sair para dançar desde que os bailes funk irregulares foram proibidos pela polícia. “Hoje, aquelas garotas têm os policiais como ídolos, e não os traficantes armados”, diz o publicitário. “Hoje, o sofisticado é o simples. Para uma marca se diferenciar, ela tem que promover transformações. É isso que estamos tentando fazer, em nome do Rio.”Quatro anos depois da primeira favela pacificada, as comunidades cariocas são descobertas por turistas, atores, cinéfilos, publicitários e, quem diria, fãs de jazz
Thelma Vilas Boas
Turistas a caminho do Complexo do Alemão
Falta muito
O projeto das UPPs não terá futuro se as instituições policiais não forem refundadas
Por Luiz Eduardo Soares *
As relações entre “asfalto” e “favelas” no Rio de Janeiro sempre foram ambíguas e contraditórias. Trata-se de uma longa e penosa história de amor e ódio, admiração e discriminação, idealização e rejeição. Desde a reforma urbana de Pereira Passos, no começo do século passado, na qual modernização rimava com remoção de cortiços e segregação higienista dos pobres, até as remoções promovidas pelo governo Lacerda, no início dos anos 1960, passando por momentos de assistencialismo autoritário e integração ambivalente do clientelismo, as favelas foram definidas como problema social, fonte de ameaça e risco, violência e contágio, desordem e caos.
Por outro lado, atravessaram o século 20 vistas como centros geradores de arte, núcleos dinâmicos da cultura popular, sobretudo nos campos da música e da religiosidade. Chegaram a ser idealizadas como espaços de vida autêntica e fraterna, abençoados pela beleza, promotores potenciais de transformações políticas e sociais. A imagem da favela oscilou entre promessa utópica (”Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”) e origem do grande medo da classe média: “Nós vamos invadir sua praia”. Lado A e lado B dessa valorização ambivalente revelavam-se nas visitas de grandes artistas às favelas, ao longo das décadas, assim como na distância da classe média. Nos fins de semana, jovens do asfalto iam aos morros sambar. Outros evitavam o contato. Com o funk, a história se repetiu: playboys e patricinhas enchiam as quadras das favelas, contra a vontade dos pais.
Essa longa trajetória de ambivalências sociais acabou levando às favelas benefícios infraestruturais e conquistas sociais, ainda que parciais e insuficientes, porque o preconceito e a desigualdade de tratamento por parte do Estado prevaleceram. As ambiguidades traduziam a dubiedade prática: esses “lugares indesejados das gentes” reduziam o valor dos imóveis vizinhos, mas garantiam a provisão da força de trabalho barata para os serviços domésticos da classe média e das elites cariocas.
A única área em que praticamente nunca houve oscilação e ambivalência foi a segurança pública. Salvo em alguns momentos históricos, as favelas foram palco da violência policial, inclusive da brutalidade letal, praticada em incursões policiais bélicas e genocidas. Considerando-se
esse painel, compreende-se a importância das UPPs, concebidas para substituir as invasões bélicas, nas quais morriam inocentes, suspeitos e até policiais. As incursões espalhavam o terror e mostravam que o Estado tratava as comunidades como “inimigas” ou aliadas dos “inimigos”, e não como conjuntos de cidadãos, destinatários do serviço. Prendiam-se alguns traficantes (substituídos de imediato como peças de reposição), apreendiam-se armas e drogas e os resultados eram apenas negativos. Com a implantação de uma UPP, o Estado afirma que a comunidade deve ser tratada como os residentes dos bairros nobres. Não há invasão policial de Ipanema. O serviço policial ali é prestado dia e noite. Essa presença contínua nas favelas inibe o domínio territorial despótico por grupos de traficantes ou milicianos. O objetivo é suprimir o controle territorial exercido por grupos criminosos. Mas essa liberação deve ser acompanhada pela provisão dos demais serviços públicos. Além disso, a cultura policial tem de ser transformada. Caso contrário, a liberação vai se degradar em novo despotismo e a pacificação será o nome fantasia do arbítrio. O projeto das UPPs não terá futuro nem poderá expandir-se (hoje atende a menos de 30 favelas) se as instituições policiais não forem refundadas. Enquanto as mudanças não chegam, chegam às favelas os novos visitantes, os vizinhos do asfalto que antes temiam esse grande Outro, esse enclave enigmático e perturbador, espelho de nossas divisões e da despudorada desigualdade brasileira.
* Luiz Eduardo Soares é antropólogo e escritor, especialista em segurança pública. Foi homenageado no Prêmio Trip Transformadores 2012.
Thelma Vilas Boas
Cenas da moite de Jazz no The Maze, no Catete
Vá sem medoHabitués dos morros cariocas indicam o melhor da programação cultural das comunidadesMariana Ximenes, atriz Pastoril da Matriz - Rua da Matriz, 80, Botafogo. Jorge Jáuregui, arquiteto Teleférico do Alemão Caio Blat, ator Teatro Nós do Morro - Rua Dr. Olinto de Magalhães, 54, Vidigal. |
O chacra da pança
Silvio Fatz
Arthur com Sri Prem Baba
Caminho a passos largos diante do tsunami de seres humanos que circulam no vaivém do Khumba Mela, festival hinduísta que toma, de tempos em tempos, a cidade de Allahabad. Sou deslocado pelo frenesi da massa humana que se espreme no setor três, músculo cardíaco deste organismo com mais de 70 milhões de pessoas. Um êxodo bíblico de proporções inimagináveis. Nesta área, encontra-se o suprassumo dos saddhus (homens santos), dos peregrinos e das organizações religiosas milenares. Minha energia circula livremente, como um rio límpido, observando comportamento, visual, postura e hábitos dos gurus e do povo em geral. Detecto que uma parte dos homens carrega uma barriga avantajada. Mesmo os magrinhos cultivam uma pancinha desequilibrada. Sinto minha barriga tremer de emoção e percebo que o terceiro chacra, o manipura, se manifesta. Controlo fazendo algumas contrações e exercícios respiratórios. Pela graça divina das águas do Ganges, não existe nenhum problema gástrico. Do setor três, me desloco para a beira do rio Yamuna e atravesso solenemente de barco para o setor 13, onde estou acampado. Ali está concentrada a sangha (família espiritual) e os discípulos do guru Sri Prem Baba, brasileiro que virou guru e que entrevistei para a Trip há três anos. Tenho um encontro ao cair da tarde com Sri Prem Baba e, aproveitando o ensejo, pergunto justamente sobre o funcionamento do chacra do umbigo.
Silvio Fatz
Arthur com amigo no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad
Qual a função do terceiro chacra?
O terceiro chacra, conhecido como chacra solar, é a sede do poder. Quando está ativo e girando no ritmo adequado, o ser humano manifesta o poder em sua forma pura. O poder que constrói, que está a serviço do amor, que pode gerar união, saúde, realização. Ao mesmo tempo, ele é a sede do ego. Quando seu poder está contaminado pelo egoísmo e pelo ódio, seu filho predileto, torna-se destrutivo. Vira agressividade, violência.
É um chacra vulnerável? Podemos neutralizar esse efeito com exercícios?
Ioga e taichi ajudam a fortalecer esse centro de energia e os órgãos relacionados a ele. Mas o que realmente possibilita que o terceiro chacra gire da forma correta é o autoconhecimento: identificar os aspectos da personalidade que distorcem esse atributo divino e, em seguida, realizar o árduo trabalho da transformação.
Os sintomas negativos são raiva, medo e problemas digestivos?
Fisicamente, esse chacra comanda o aparelho digestivo, e o estômago é seu principal órgão. Então, quando seu poder é usado indevidamente, há tendência a problemas gastrointestinais: os órgãos da região ficam enfraquecidos. Mas o principal aspecto nocivo é o uso indevido do poder.
As emoções ficam comprometidas?
E a ação também. A ação é fruto do poder. Se o poder é contaminado pelo ódio, a ação também é. Estamos falando da energia masculina, do poder de ação. Muitas vezes, para não gerar destruição, a pessoa se paralisa. Ela sabe o que precisa fazer, mas não consegue. Isso pode ser entendido como preguiça, depressão, falta de entusiasmo. Mas é um mecanismo autorregulador: ela sabe que, se fizer, vai gerar destruição. Muitos indicam exercícios físicos, energéticos, respiratórios e posturas de ioga que ajudam a reequilibrar o chacra. Mas essa melhora é temporária, porque estamos tratando o sintoma e não a causa. Para que haja solução definitiva, a pessoa tem que ter disposição para voltar a atenção para si mesma e entender o que está gerando o distúrbio.
Notei que aqui há homens hindus com pança avantajada.
[Risos] Você sabe que existe um ditado por aqui que diz que todo guru tem tendência à pancinha? Porque ele relaxa demais e o abdome relaxado tende a crescer.
Existe diferença entre o terceiro chacra nos homens e nas mulheres?
Não. Tanto na mulher quanto no homem é o chacra do poder e do ego. Mas a distorção do poder masculino é a agressividade, enquanto a do poder feminino, além da violência, pode ser a vitimização, a submissão.
Quem come muito pode fazer isso por desequilíbrio desse chacra? Ele tem relação com o prazer de comer?
Tem. Quando existe a distorção desse atributo divino que é o poder, quando o ego está no comando, há ansiedade, essa certeza de que falta algo que não se sabe o que é. É muito fácil preencher esse vazio com comida. O ser humano é educado assim. Sempre que tem um desconforto, vem um docinho, uma comidinha. Assim ele tenta fugir da angústia existencial de não saber quem é, de estar sob a tirania do ego.
Arthur com amigos no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad
É tudo uma coisa só
Katie Scott
Pesquisando o complexo sistema nervoso que comanda a digestão, os cientistas começam a elucidar a ligação evidente entre a barriga e nossos sentimentos — e a entender o que a medicina oriental já dizia: que é preciso digerir bem o medo, a raiva e a angústia. E que físico e emocional são inseparáveis
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu frio na barriga de medo. Ou teve de sair correndo para o banheiro em uma situação de tensão. Ou perdeu o apetite ao se apaixonar loucamente. Ou sentiu o estômago revirar diante de uma visão repulsiva. Ou engordou por ansiedade. Ninguém nega que a barriga seja um campo fértil para a somatização, o nome genérico que se dá à transformação de emoções negativas em males físicos, com consequências tão graves que chega a ser reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. Mas por que tanto assim?
A resposta pode estar no estudo aprofundado sobre a respeitável rede de neurônios que comanda a função digestiva, e na revelação de que boa parte dos neurotransmissores que circulam pelo corpo, carregando emoções e sensações, tem origem no intestino. Incluindo a serotonina, hormônio do bem-estar.
“Na verdade, essas descobertas só dão base concreta ao que já sabíamos intuitivamente”, diz Marcílio Hubner de Miranda Neto, médico e coordenador do Laboratório de Pesquisas em Neurônios Entéricos da Universidade Estadual de Maringá (PR). “A vida emocional tem relação direta com os hábitos alimentares, e o funcionamento da digestão é diretamente influenciado pelas emoções”.
Cada uma à sua maneira, as medicinas, filosofias e religiões orientais conhecem e explicam essa via de mão dupla há milênios. Os japoneses acreditam que é na barriga que se sente, se pensa, se tomam decisões, se guardam segredos. A importância do hara na cultura japonesa se reflete em uma coleção de expressões populares, envolvendo a barriga, de fazer inveja às nossas, que não são poucas (leia o boxe “A voz das tripas”).
O sistema de chacras, que sustenta até hoje a medicina hindu e está na base da filosofia dos iogues, relaciona intimamente emoções e órgãos. Descritos pela primeira vez nos Vedas, textos hindus datados de 2 mil anos antes da era cristã, os chacras (roda, em sânscrito) são sete redemoinhos de energia que se alinham ao longo da coluna. Cada um tem a incumbência de distribuir o nutriente que vem da respiração – o prana – a um grupo específico de órgãos; e a cada um cabe processar pensamentos e sensações específicos.
A barriga abriga dois chacras importantes: o segundo, swadhisthana, ligado ao aparelho reprodutor, ao impulso sexual e às funções de desintoxicação; e o terceiro, o manipura, que o guru brasileiro Sri Prem Baba define como “a sede do poder de realização e do ego” (leia entrevista a Arthur Veríssimo nas páginas a seguir).
Se os chacras não funcionam bem, por algum desequilíbrio, podemos reter sentimentos como medo, raiva e angústia, explica Simone Caldeira, terapeuta corporal que usa o toque para trabalhar a integração craniossacral. Os órgãos podem ter ou não sua função otimizada, dependendo de como a energia flui por eles. “Se o chacra está bloqueado, as funções físicas e emocionais também estão”, diz. Nesse pensamento, físico e emocional “são uma coisa só”.
“A região abdominal é nosso centro de energia. É como se fosse uma segunda mente”, monja Coen
A medicina tradicional chinesa, que considera a barriga “o centro do homem”, estabelece com precisão como cada emoção negativa altera o funcionamento dos órgãos. “Baço, pâncreas e estômago metabolizam a comida, transformando-a em um substrato sem o qual nada no corpo funciona”, diz o acupunturista Marcius Luz, de São Paulo. “Se a energia dos órgãos se desequilibra, o substrato acumula, gerando obesidade, por exemplo.”
A desarmonia pode vir de excessos alimentares ou emocionais: para os chineses, preocupação excessiva e pensamentos obsessivos esgotam a energia do baço, e a raiva afeta o fígado.
O segundo cérebro
Praticada há 5 mil anos na Índia e cada vez mais conhecida no resto do mundo, a ayurveda tem uma imagem curiosa para a digestão. Segundo essa medicina, a barriga abriga o agni, um fogo metabólico que processa não só comida, mas tudo que experimentamos: emoções, memórias, sensações. Se o agni é ou está fraco, toxinas e emoções se acumulam, gerando dor, suscetibilidade à infecção e obesidade, assim como depressão, fadiga e dificuldade de se manifestar. “Por isso, o abdome é o centro das emoções”, diz Erick Schulz, vice-presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.
“A região abdominal é nosso centro de energia. É como se fosse uma segunda mente”, diz a monja Coen, fundadora da Comunidade Zen-budista, em São Paulo. Nesse ponto, a neurociência tende a concordar. Com 100 milhões de neurônios acomodados do esôfago ao ânus – mais do que o resto do sistema nervoso periférico inteiro –, o aparelho digestivo é, de fato, um segundo cérebro.
O primeiro a dizer isso com todas as letras, em 1996, foi o neurobiólogo norteamericano Michael Gershon, que chefia o departamento de anatomia e biologia celular da Universidade Columbia, em Nova York. Em seu livro The Second Brain, ele explica que, para administrar cada reflexo, espasmo e mudança química necessária à transformação dos alimentos – do esôfago ao estômago, do intestino delgado ao cólon –, o aparelho digestivo precisa avaliar cada situação, decidir-se por uma linha de ação e iniciar movimentos. Daí ser relativamente autônomo em relação ao cérebro, e daí envolver tantos circuitos de neurônios, neurotransmissores e proteínas.
“O intestino realiza funções de alta complexidade. Se ele não pensa de forma autônoma, como o cérebro, é certamente embarcado com grande inteligência”, diz Luiz Guilherme Correa, médico formado pela Universidade de São Paulo (USP), onde também cursou filosofia, e especializado na medicina tradicional indiana. Essa complexidade deve explicar, acredita Gershon, por que doenças como ansiedade, depressão e síndrome do intestino irritável se manifestam de formas associadas no cérebro e no aparelho digestivo. Grosso modo, nossos pensamentos e emoções são influenciados pelo que acontece nos intestinos, e vice-versa.
E tem mais. “Sabemos, pela neurociência, que 90% da serotonina não é produzida no cérebro, mas no abdome, na região do intestino e do fígado”, diz Ricardo Ghelmam, que coordena o Núcleo de Medicina Antroposófica da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp). “Então, se uma pessoa tem depressão, por exemplo, isso não é um problema de cabeça, mas do metabolismo digestivo.” Para a medicina antroposófica, o abdome está ligado à vitalidade e à força de vontade.
Com tantos fios conectando emoções e digestão, parece claro que, para o bem da barriga, é preciso cuidar da cabeça – e vice-versa. “Se você quiser aumentar a serotonina, a vontade de viver, o impulso de vida, tem de estimular essa força metabólica ligada à barriga”, diz Ghelmam. “O sedentarismo e a alimentação pobre em fibras vão na direção oposta disso, gerando doenças crônicas degenerativas, como diabetes, hipertensão e até câncer.”
Fortalecer a musculatura do abdome por meio de práticas voltadas diretamente para ela, como ioga, tai chi e pilates, também é uma forma de estimular as funções digestivas – e, por consequência, serenar as emoções. A monja Coen sugere um começo: “Respirar de forma consciente, profunda e suavemente, sentindo o abdome se expandindo e retraindo, é o caminho para nossa casa do tesouro, que jamais se exaure”.
Respirar fundo é básico, concorda Simone Caldeira. Para se sentir melhor e para não ter barriga proeminente. “O diafragma, responsável pela respiração, é um músculo intimamente ligado ao medo e ao estresse. Em estresse, ele ‘respira curto’, e isso causa dezenas de problemas”, explica. Na floresta, os animais respiram curto para não serem ouvidos pelos predadores. “A respiração faz um barulhinho que, na floresta, pode custar a vida”, diz. Pela mesma razão instintiva, homens e mulheres encurtam a respiração quando têm medo. “Em cidades como São Paulo, o predador está presente o tempo inteiro, na forma do chefe, do rival, da violência. Então a gente respira curto sem notar.” Com a tensão que isso gera, o diafragma é empurrado para baixo, na direção do chão, pressionando todos os órgãos e forçando o abdome para frente. “Os homens têm muito isso. E aí pode malhar quanto quiser que a barriguinha não sai.”
Katie Scott
A voz das tripasExpressões idiomáticas em várias línguas põem emoções como medo, raiva e vontade no devido lugar: a barrigaA ligação entre emoções e barriga pode ser um mistério que só agora a ciência ocidental começa a elucidar. Mas, na língua do dia a dia, sempre foi dada como certa. E não só na nossa. Entre as sensações “estomacais” universais que ganham expressão inclui-se aquele misto característico de ansiedade, excitação e medo. Em inglês e alemão, borboletas no estômago; em espanhol, bolhas de sabão na barriga; aqui, frio na barriga. Usamos soco no estômago para falar tanto de agressão física quanto de qualquer outra que pegue no lugar certo. E não somos os únicos a confundir náusea física e desgosto ético: em inglês, francês, espanhol e alemão, algo revoltante dá vontade de vomitar. Se em português é preciso ter estômago para aguentar uma situação aviltante, em inglês a expressão equivale a querer. A cultura anglosaxônica também põe coragem e intuição na barriga. Ter tripas é ter, digamos, colhões; e sentir nas tripas é ter uma revelação. Nada se compara, porém, à barriga dos japoneses. O hara não é só abdome, intestino, estômago. É onde moram coragem, determinação, vontade, imaginação e entendimento, além do lugar onde as decisões são tomadas. Assim, barriga grande é metáfora para mente aberta; barriga pequena, para pobreza de espírito; barriga dura equivale ao nosso “coração de pedra”; ler o estômago de alguém é entender a intenção alheia; ir pela barriga, agir com integridade; guardar na barriga, manter segredo. Quando os japoneses ficam bravos, a barriga ferve. Já para os franceses, estar com o coração na barriga equivale a ter “sangue nos olhos”. A barriga dos franceses também é uma espécie de ponto fraco, em matéria de honra: pisar na barriga de alguém é passar por cima da pessoa. Idem para os alemães, que chamam fracasso de barrigada. |
Um, dois, supera!
Lá o som ao redor é uma mistura de batidão eletrônico, esteiras rolando, respiração ofegante, ruídos de conversa condensados e ferro batendo contra ferro. De vez em quando, risadas de adultos, gritos de crianças e exclamações como “Vambora, força!” sobressaem nessa amplificada massa sonora. Luzes frias iluminam o cenário tomado por espelhos e telas de TV, onde centenas de pessoas dedicam-se a lapidar corpos de diversos portes, cores e idades. Estamos na maior sala de musculação do Brasil – é o que professa um cartaz na entrada da academia Ilha Point, na Ilha do Governador, zona norte do Rio. O maquinário de forjar músculos e suprimir gorduras que se encontra por ali é de cair o queixo quadrado de qualquer marombeiro: são 80 esteiras, 60 bicicletas e mais de 200 aparelhos de puxar ferro. Uma piscina semiolímpica, salas de aula, um salão de beleza, uma clínica estética e lojas de roupas para malhar e suplementos alimentares complementam o complexo. Só a sala de musculação ocupa uma área de 2.500 metros quadrados, distribuídos em dois andares de um edifício com ares de antiga fábrica, que poderia ter virado igreja evangélica ou filial de universidade particular, como outras construções similares na região. Acabou convertido em um templo dos corpos torneados, um monumento à obsessão dos cariocas pela forma e, ainda, para alguns, o símbolo de uma grande transformação no cada vez mais disputado mercado fitness brasileiro. Vamos por partes, como o bom treinador, que sabe que é preciso trabalhar cada grupamento muscular de uma vez. Em primeiro lugar, o que faz o ambiente de uma academia são as pessoas que a frequentam. Morador de Ramos, também na zona norte, Julio Cesar Moura, 38 anos, é um dos personal trainers que trabalham ali com uniformes negros, que os diferenciam dos demais professores. Além da Ilha Point, ele dá expediente em mais duas academias, uma na Penha e outra em Jacarepaguá. Dizendo-se um “pezão”, cruza o subúrbio de ônibus e van, encarando o verão mais quente das últimas décadas. A zona sul e a Barra, meca das academias cariocas, não fazem parte do seu roteiro. Carismático e hiperativo, Julio Cesar gosta de ser chamado de Personal Boladão. O apelido, ele explica mexendo a cabeça e balançando as pernas sem parar, deve-se à determinação incansável com que busca motivar os alunos. Na Ilha Point, Boladão (atendendo ao seu pedido, só o chamaremos pelo nome artístico) treina sete mulheres e um homem. Ganha em média R$ 50 por hora e repassa à academia R$ 100 por mês por cada aluno. É preciso estar atento e forte: caso você tenha a honra de um dia integrar o Team Boladão, deve estar preparado para receber diariamente mensagens SMS como: “Nada de pizza depois do Fantástico, hein?” ou então: “Boa noite. São 11 horas, eu já estou dormindo. E você?”. “Hoje, o mercado exige diferenciais. Os meus são saber motivar o aluno e me manter conectado, mesmo fora da academia. Eles sabem que estou sempre pensando e cuidando deles”, explica o personal, esperando sentado por uma aluna que lhe deu chá de cadeira. Lambaeróbica A primeira aluna só foi chegar por volta de onze da manhã. Era a comissária de bordo Camila Vieira, antiga amiga que resolveu experimentar o método Boladão de exercício. Ex-funcionária da Web Jet, incorporada pela GOL no ano passado, Camila continua recebendo salário por determinação judicial, embora não tenha voado nos últimos meses. Ela trata de aproveitar o tempo livre correndo atrás do prejuízo na academia: “Fiz uma preparação de quatro meses só para voltar à academia, não queria chegar aqui parecendo uma velha. Agora estou alcançando o ritmo”, conta a aeromoça, enquanto descansa um pouco. As mulheres, 60% do público da Ilha Point, são maioria em aulas com nomes em inglês, como Dance mix, Power lifting e Body balance Quando a atividade recomeça, Boladão apresenta outra de suas marcas registradas: os lemas motivacionais. “Um, dois, supera! Três, quatro, cadê? Não tô vendo! Cinco, seis, rompe! Sete, oito, rompe! Rompe! Nove, supera, vamos lá! Dez! Largou o peso e correu pra esteira”, arremata, e sai correndo na frente com o tablet no qual monitora o rendimento do alunos. As mulheres formam cerca de 60% do público da Ilha Point e são maioria também em aulas com nomes em inglês como Dance Mix, Power Jump, Power Lifting e Body Balance. Em uma das salas, umas 30 mulheres e apenas dois homens pulam em pequenas camas elásticas ao som de um inusitado rock’n’roll. O triatleta e entusiasta da malhação aeróbica Luiz Felipe Aguiar comanda a aula, incendiando a turma com gritos de: “Força, vamos dançar!”. Em salas ao lado, a lambaeróbica – verdadeira fênix das academias – e o spinning correm soltos. Por volta de sete da noite, a Ilha Point está em seu horário de pico, com esteiras tomadas e uma multidão correndo, malhando e conversando. Crianças brincam em um parquinho indoor, enquanto os pais trabalham... o corpo. No andar de cima, os marombeiros da pressão revezam nada menos do que seis supinos. Alguns deles são militares que servem na base aérea do Galeão, a poucos metros da academia. É o caso do capitão de infantaria da Aeronáutica José Luiz Gondin. Com seus 46 centímetros de bíceps e sua barba modelada (“Agora posso usar, pois estou de férias”), Gondin é um dos frequentadores mais assíduos da Ilha Point, malha de domingo a domingo, geralmente duas vezes por dia. “Tenho dois objetivos: chegar bem aos 100 anos e poder comer todas as besteiras que quiser”, diz o sarado militar de 49 anos. Thelma Vilas-Boas A instrutora Aline Oliveira é campeã carioca, brasileira e sul- americana de fisiculturismo (ou body fitness, como ela prefere chamar) Tigresa do funk Nas paredes verde-menta da Ilha Point estão colados cartazes com propagandas de campos de paintball, tratamentos estéticos a dar com pau, mercados de verduras e uma hipercalórica cadeia de pizzarias. Destaca-se em meio a essa miscelânea o rosto do cirurgião plástico Gustavo P. Vaitsman, cujo anúncio se repete em uma página inteira na revista da academia. Encontramos o doutor Vaitsman, que tem consultório nas cercanias, malhando com seu personal em uma tarde de segundafeira: “Tanto eu como a academia temos como público-alvo pessoas que se preocupam com beleza e saúde. Hoje, somos parceiros: eles me indicam para os alunos interessados e eu recomendo para cá pacientes que precisam fazer exercício”, explica com naturalidade o médico, que já foi campeão brasileiro de iatismo e hoje transpira para entrar em forma. Outro rosto conhecido na Ilha Point é o da modelo Mariana Souza, musa da escola de samba União da Ilha, ex-dançarina de Mr. Catra e, atualmente, vocalista do grupo As Tigresas do Funk. Diariamente, ela desfila por ali suas formas generosas vestidas em tons vibrantes, adornada por pulseiras e brincos de ouro e levando a estrela de Davi tatuada no antebraço. A responsável por suas formas é a inseparável personal trainer Aline Oliveira, que só à noite pode se dedicar ao próprio treino. Ossos, ou melhor, músculos do ofício: além de instrutora, Aline é campeã carioca, brasileira e sul-americana de fisiculturismo, ou body fitness, como prefere chamar. Atualmente, treina para o Arnold Classic, competição internacional que ocorrerá no Rio, em abril. “Eu respiro esta academia. No início, o pessoal não entendia muito bem o que era body fitness, achava que era só bomba. Hoje, recebo muito apoio.” Geração Cocoon Por volta das 17 horas, três vezes por semana, Maria Auxiliadora Trajano, a Dodô, aparece religiosamente no salão de ginástica. Com 74 anos, é uma das decanas da academia. Piadista, gosta de dizer que estacionou nos 35 e que malha para não enferrujar. Na verdade, Dodô convive com uma fissura crônica na medula, fator de risco para a leucemia, e assegura que a ginástica tem sido fundamental em sua luta para não sucumbir. Obstinada, em março pretende renovar a matrícula por mais dois anos, aderindo ao mais extenso plano de fidelização da academia. “Desde que comecei a malhar, fiquei viúva e aconteceu muita coisa, mas continuo aqui, caminhando meus 2 quilômetros por dia. Ajuda a arejar a cabeça”, explica Dodô, aposentada por um escritório de advocacia e ex-presidente do clube de escoteiros 77 Uirapuru, cujo lema, “Sempre alerta e obediente”, faz questão de repetir. "O mercado exige diferenciais. Os meus são saber motivar o aluno e me manter conectado, mesmo fora da academia" O caso de Dodô ilustra bem duas estratégias contemporâneas das academias: fidelizar o máximo de clientes e atrair o crescente público da chamada melhor idade. “Estamos assistindo a um fenômeno que gosto de chamar de Geração Cocoon, gente de 70, 80 anos que quer continuar vivendo e fazendo esporte. As academias precisam aprender a atrair e lidar com esse público”, revela o empresário paulista Waldyr Soares, 72 anos, presidente do Instituto Fitness Brasil, malhador contumaz e espécie de think tank do ramo no país. “Sou um dinossauro nesse negócio e só sei que é o melhor momento que já tivemos.” Recentemente, Waldyr visitou e malhou em dois extremos do mercado, a luxuosa Body Tech, do Shopping Eldorado, em São Paulo, cuja mensalidade chega a R$ 500, e uma recém-inaugurada academia a preços populares no bairro de Cocaia, na periferia paulistana, frequentada por caminhoneiros, empregadas domésticas e motoboys. Ficou impressionado com a sofisticação da primeira e com a quantidade de alunos da segunda. “O mercado de fitness e bem-estar já vinha crescendo muito no país com foco na classe A. De uns dois anos para cá, com o aumento da classe C dentro do novo modelo econômico brasileiro, a coisa explodiu. Agora assistimos à consolidação de grandes grupos no país e à popularização das academias através de cadeias low price, que estão se espalhando rapidamente”, observa. A última grande pesquisa realizada pelo Sebrae, em 2011, demonstrou forte predominância da Classe B na Ilha do Governador, um segmento da classe média menos alardeado ultimamente. São os principais frequentadores da Ilha Point, onde a mensalidade custa R$ 240, mas cai para R$ 129 no plano de 24 vezes. Segundo dados próprios, atualmente malham por ali 5.500 sócios. A academia existe desde 2007, mas só no ano seguinte tornou-se filial do grupo Proquality. O novo salão, com 40 esteiras novas, foi inaugurado em novembro do ano passado e faz parte de uma estratégia para atrair até 10 mil alunos antes do final do ano. O grupo Proquality nasceu modestamente em 1994, em Pinheiral, município de apenas 22,7 mil habitantes no interior do estado do Rio. A primeira academia tinha apenas 60 metros quadrados e foi um presente dado pela mãe ao jovem calouro de educação física Valério Ramalho. “Eu era, ao mesmo tempo, o estagiário e o dono. Tínhamos só 50 alunos e fomos descobrindo sozinhos como se faz uma gestão”, lembra Valério. “Hoje, o mercado só atende 4% da população do país. Nos próximos anos, chegaremos a 17%” De Pinheiral, onde ainda vive, o empresário expandiu negócios para Volta Redonda – hoje QG do grupo –, Barra Mansa e, finalmente, instalou seus supinos no Rio. Hoje, é dono de 13 filiais, com preço e luxo variados para malhadores do abastado Leblon à mais humilde Vila Isabel, do lendário compositor Noel Rosa. Aliás, caso vivesse em nossa época, o raquítico e boêmio poeta da Vila seria a mais perfeita antítese da geração bodybuilding. Mas mesmo nos distantes anos 20 já encontramos indícios da paixão carioca pelos corpos torneados. Em “Tarzan (O filho do alfaiate)”, Noel cantou a história de um magricela-filé-de-borboleta, como ele, que arrancava suspiros e distribuía autógrafos na praia graças a um fantástico terno musculoso, uma “armadura de casimira dura” tecida pelo pai. Como a alternativa ao fitness imaginada pelo compositor nunca pegou, o Rio continua sendo a capital nacional do culto ao corpo. Há quase duas décadas no ramo, Valério realiza estudos de mercado para garimpar novas áreas promissoras na cidade. Ele pergunta até ao repórter se conhece algum local interessante para investir em um bairro da zona sul. O empresário está seguro de que o Brasil verá o número de academias multiplicar nos próximos anos, enquanto o mercado fitness se adequará às tendências de concentração da economia atual: “Hoje, o mercado só atende 4% da população do país. Nos próximos anos, chegaremos a 17%. Mas, de agora em diante, só haverá espaço para as cadeias. Teremos academias de grande porte, como a Ilha Point, e o fim das academias médias de bairro, que vão virar pequenos estúdios ou desaparecer.” Homem sarado, capitalismo selvagem.Os personagens e a rotina da Ilha Point, academia da zona norte carioca que reivindica o título de maior salão de musculação do Brasil
A fome e a vontade de fazer
O mundo ainda tem muita fome. Uma em cada oito pessoas no planeta está desnutrida. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 870 milhões de pessoas não comem o suficiente para serem consideradas saudáveis. Desse total, 75% estão em zonas rurais, a maioria vivendo de agricultura de subsistência. O número é vergonhoso, mas já foi mais alto. Há duas décadas, havia 1 bilhão de famintos na Terra. Há 50 anos, dois em cada três cidadãos do planeta passavam fome. O paradoxal é que não faltam alimentos para suprir esse contingente. O planeta produz a cada ano 2,5 bilhões de toneladas de cereais, com estoque de 500 milhões de toneladas. Há comida suficiente. O problema é levá-la a quem precisa e acabar com o desperdício: todo ano, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou jogadas no lixo. A guerra contra a fome é um dos grandes desafios colocados pela ONU aos seus 193 países- Omissão política Diplomata e deputado federal mais tarde perseguido pela ditadura militar (morreria no exílio, em 1973, deprimido por não conseguir voltar ao Brasil), Castro foi pioneiro ao sugerir políticas de segurança alimentar, incentivo à agricultura familiar e criação de restaurantes populares. Seus livros foram traduzidos em 25 idiomas. O mais famoso, Geografia da fome, lançado em 1946, representou uma quebra na “conspiração do silêncio” que existia em torno do assunto, como diz o professor Malaquias Batista Filho, da Universidade Federal de Pernambuco – aluno de Castro e hoje grande especialista em saúde e nutrição. “Ele foi o primeiro pensador de um governo mundial capaz de gerir o problema da fome e da miséria”, destaca. “Encaro o desafio [de erradicar a fome no mundo nos próximos anos] com bastante otimismo, por mais incrível que possa parecer” Em outra obra, Homens e caranguejos, recorreu às metáforas do mangue e do homem- Fome Zero José Graziano da Silva é filho de mãe calabresa e pai paulista – e ilustre: José Gomes da Silva foi fazendeiro de sucesso, agrônomo especialista em reforma agrária, tendo ocupado cargos nos governos paulista e federal, além de ser consultor da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da própria FAO. Nascido por acaso nos Estados Unidos, em Urbana (Illinois) – por conta do mestrado que o pai fazia por lá –, Graziano foi militante da juventude católica de esquerda e se formou agrônomo em 1972 pela Esalq, a Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (USP). Fez doutorado na Unicamp e outras pós na Universidade da Califórnia e no Instituto de Estudos Latino-Americanos da University College London. Foi José Gomes, o pai, que em 1991 acabou incumbido por Lula de elaborar um programa de segurança alimentar para o Brasil. Mais de dez anos depois, em 2003, com Lula eleito presidente, José Graziano, o filho, virou o ministro do Fome Zero, programa que completa dez anos em outubro e que, apesar de dividir opiniões – os críticos mais ácidos o chamam de “bolsa esmola” – tem êxito reconhecido pela ONU. FAO/Alessandra Benedetti Graziano em Guaribas, no Piauí, na época da implantação do Fome Zero Na esteira desse êxito (segundo os números oficiais, 24 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema com o programa) Graziano, pai de dois filhos e avô de dois netos, tornou-se diretor da FAO para a América Latina e ganhou a força política que o fez vencer as eleições para a direção-geral da instituição, em junho de 2011, numa disputa acirrada com o ex-chanceler espanhol Miguel Angel Moratinos. A escolha se deu em meio a um processo de reforma da entidade. Uma das primeiras mudanças foi encurtar o mandato do diretor- Orçamento baixo Assim que ganhou a eleição, as notícias não foram as mais animadoras para Graziano: para começar, o orçamento da organização para o biênio 2012-2013 teve reajuste tímido (de apenas 1,4%), o que se deve em grande parte à pressão dos países mais ricos (como os EUA), que, em franca crise econômica, exigem que a FAO faça suas reformas e corte gastos antes de pedir mais dinheiro. Com US$ 1 bilhão para gastar (fora as contribuições voluntárias dos países, que devem somar US$ 1,4 bilhão no período), Graziano não escondeu que esperava mais: “A solidariedade do mundo desenvolvido é crucial”, disse na época. Mas ele concorda que a reforma administrativa é fundamental – e descentralizar é a palavra de ordem. Se ao assumir ele encontrou 80% dos 3 mil funcionários trabalhando em Roma, sua meta é espalhar a entidade por mais lugares, levando ajuda e orientação técnica a quem precisa. À frente da FAO, Graziano se desdobra como um globe-trotter. Na mesma semana, é capaz de estar em Luanda, capital de Angola, voar para Nova York, nos Estados Unidos, e em seguida dar um pulo em Roma, na Itália, onde está o quartel-general da FAO (e o apartamento onde mora com a mulher, a jornalista Paola Ligasacchi). A agenda se desdobra entre reuniões com chefes de Estado, técnicos e representantes diplomáticos. E, claro, visitas às comunidades mais remotas do planeta. Em janeiro de 2012, pouco depois de assumir o cargo, Graziano andou por países do Chifre da África, onde a soma de décadas de conflitos políticos e a pior seca em 60 anos causaram fome e morte em 2011. Na Somália, país-símbolo desse desastre, a situação extrema melhorou em 2012, graças a uma melhor colheita e um aumento nas entregas emergenciais de alimentos. A crise, claro, não acabou – como o próprio diretor-geral admitiu publicamente ao voltar da viagem. Mas é inegável que, em lugares como a Somália, um dos países mais pobres e violentos do mundo, atormentado por milícias em guerra, a questão da fome vai muito além dos problemas estritamente relacionados à produção e à distribuição de comida. Meta ambiciosa Por tudo isso, soa até utópico o desejo de atender à convocação do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, de não apenas reduzir, mas erradicar a fome global até o ano de 2015. A ideia é que todo ser humano tenha direito a ingerir pelo menos 1.850 calorias diariamente. Sem a cooperação de todas as nações, é improvável que José Graziano consiga atingir a meta em seus quatro anos de mandato. Ainda assim, o diretor-geral gosta de dizer que, se houver vontade, o objetivo não é assim tão despropositado. “O Brasil, por exemplo, conseguiu transformar a região de Petrolina, em pleno semiárido, no estado de Pernambuco, num celeiro de produção de alimentos. Lá, plantam-se frutas e produz-se até vinho. Dá para fazer isso na África.” De voz calma, Graziano diz não temer a tarefa. “Encaro o desafio com bastante otimismo, por mais incrível que possa parecer”, comenta. Um dos amigos mais próximos, o veterano jornalista Ricardo Kotscho, que trabalhou com ele no governo Lula, diz que esse é um dos traços do professor, que descreve como “um homem simples e modesto, mas que tem sonhos”. Combater a fome mundial sem o respaldo da comunidade global é tarefa bem mais complicada do que a experiência vivida com o Fome Zero – quando Graziano tinha o apoio do presidente da república e a simpatia de diversos setores da sociedade. Mas a experiência técnica no desenvolvimento de políticas agrícolas é um dos elementos que podem fazer a diferença em sua gestão, como apontou um artigo do jornal britânico Guardian, pouco depois de sua escolha para o comando da FAO: “São agricultores – e não diplomatas – que cultivam alimentos”. Para Graziano, a solução para os problemas de segurança alimentar começa nas aldeias, nas cidades, com iniciativas locais. “Ninguém come em nível global. Você come no restaurante, na cantina, na sua casa É aí que precisamos de respostas.” Exatamente como pregou o pernambucano Josué. Mas agora, espera-se, com mais condições para acertar.Seis décadas separam as atuações dos dois únicos brasileiros no comando da FAO, braço da ONU criado em 1945 para combater a fome no mundo. De Josué de Castro, que presidiu o conselho da organização entre 1952 e 1956, a José Graziano, diretor-geral desde 2012, levar comida até as barrigas nas quais ela sempre faltou se mantém como um imenso desafio. A dúvida é: temos mais chance de resolvê-lo?
membros. No centro de comando da luta, é um brasileiro que dá as ordens: José Graziano da Silva, que ficou conhecido como o ministro que implantou o programa Fome Zero no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva – e que desde janeiro de 2012 é o diretor-geral da FAO, sigla para Food and Agriculture Organization, braço da ONU para as questões ligadas à alimentação e à agricultura. Não é a primeira vez que um brasileiro lidera a agenda internacional do assunto: em 1952, exatos 60 anos antes da posse de Graziano, um médico pernambucano chamado Josué de Castro chegava à presidência do conselho da mesma FAO – entidade fundada em 1945 com a função de aumentar os níveis de nutrição e qualidade de vida no mundo, além de melhorar a produtividade da agricultura e dar melhores condições às populações rurais.
caranguejo, “que vive na lama e da lama”, em seu Recife natal, para denunciar a fome – ideia que, nos anos 90, serviu de inspiração para o movimento Manguebeat, liderado pelo músico Chico Science. Josué de Castro tinha a clara percepção de que a fome não é um problema natural, decorrente da falta de água e condições para plantar, ou um castigo divino. A, fome, para ele, era fruto de omissão política. Graziano acredita na mesma ideia.
geral de seis para quatro anos e limitar a apenas dois mandatos consecutivos a possibilidade de ficar no posto (o antecessor, o senegalês Jacques Diouf, ocupou o cargo por 18 anos e o deixou sob críticas de ineficiência).
À procura da barriga perfeita
Faz tempo que os cuidados com o corpo e a exibição dele são entendidos como “assunto de mulher”. Mas uma rápida passada de olhos por qualquer banca de jornal mostra que agora os homens também estão nessa: nunca estivemos tão obcecados com o próprio umbigo e seus arredores. Ao lado de modelos mais perfeitos do que o Davi de Michelangelo estão promessas de que a graça do abdome perfeito é algo ao alcance de todos: “Tchau, pança”, “Tanque e peito de aço!”, “O corpo que ela curte”, “A dieta do abdome” e “Barriga tanque em 1 mês” são exemplos de chamadas de capas. O que tanto está pegando na nossa barriga? Luiz Maximiano Bruno Murata, 31 anos, lutador de MMA Circunferência abdominal: 85 centímetros “[No MMA] É primordial ter um abdome forte, porque você leva soco no corpo constantemente. Senão, vai levar um na barriga e vai dobrar. O treino em si já enrijece. Não tenho uma preocupação grande com a barriga. Não me privo de nada. Carne vermelha, que é um vilão, como quase todo dia. Sou personal trainer de luta e meus alunos homens falam sobre isso em off. O cara quer aprender a lutar, mas pergunta se vai ficar sarado. Acho que ele tem vergonha de falar, de ser rotulado de vaidoso. A velha ideia de que isso é ‘coisa de viado’” O fenômeno não é regional – nos EUA, país com uma das maiores taxas de obesidade do mundo (35,7% dos adultos), a tendência é forte desde a mais tenra idade. A revista especializada Pediatrics divulgou no ano passado um artigo que mostra que 40% dos meninos nos ensinos fundamental e médio fazem exercícios regularmente para aumentar a massa muscular corporal. Quase a mesma porcentagem (38%) já consome suplementos alimentares e 6% já usaram esteroides. A maioria (90%) diz que procura aumentar sua massa de alguma maneira. No Brasil ainda não há pesquisas similares, mas já é possível dizer que estamos no mesmo caminho. Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o médico José Horácio Aboudib conta que notou um aumento no número de homens buscando vários tipos de intervenções cirúrgicas: “Talvez hoje os homens representem 20% da clientela. Há dez anos, eram 4%. É um aumento muito grande”. As cirurgias mais procuradas por eles são a plástica de pálpebras, o implante de cabelos e – olha a barriga aí – a lipoaspiração. “O que as pessoas querem é a barriga reta: ‘Ah, doutor, quero ficar sem essa pelanca, sem flacidez’.” Não surpreende que a modelo de lingerie Candice Swanepoel tenha virado notícia ao postar uma foto de sua barriga no aplicativo Instagram, inaugurando o termo “barriga negativa”. Já esguia, Candice revelou um abdome que não só não é protuberante, mas tem uma concavidade em relação aos quadris e ao corpo. Candice tem como original de fábrica aquilo que todo mortal se esforça para mostrar a cada vez que se vê diante de uma câmera fotográfica: a barriga encolhida, para dentro. Questões estéticas à parte, o que a maioria das pessoas parece ignorar é a importância da barriga no equilíbrio geral do corpo. Para o professor Julio Serrão, coordenador do laboratório de biomecânica da Universidade de São Paulo (USP), a chave para desvendar a questão tem quatro letras: core. “O ser humano tem um problema gigante no corpo, que é a instabilidade da coluna”, diz ele. “O core é uma cinta de músculos que sustenta e estabiliza a coluna.” Ou seja, se o core está forte, a coluna está forte, e, se a coluna está forte, não há limitação de movimentos, dores lombares, entraves e uma série de doenças relacionadas à mobilidade parcial da coluna. Grosseiramente falando, o core é a musculatura concentrada no cinturão abdominal, estendendo-se às costas. “A barriga divide a parte de cima da parte de baixo do corpo. Quando você começa a entender a importância que ela tem, tudo muda”, diz Caio Vieira, praticante e instrutor de ioga há 11 anos. “Ao conseguir, com exercícios posturais, isolá-la do resto do corpo, você cria três estruturas independentes, mas ainda assim interligadas. Nessa hora, a respiração sai da barriga e vai para a caixa torácica, e é quando você expande os pulmões de forma total, usa 100% de sua capacidade respiratória e oxigena o corpo e os órgãos em volume máximo. Os benefícios são incontáveis.” É por isso que, quando estamos nos exercitando, muitos instrutores repetem o mantra: “Concentre-se na barriga”. Há uma longa distância entre perceber a importância do core e da barriga como nosso centro de gravidade e essa obsessão em voga pelos músculos abdominais. Luiz Maximiano Pedro Moreno, 36 anos, professor de ioga Circunferência abdominal: 83 cm 'Não sou o tipo de cara que pensa com a barriga nem pensa na barriga. Credito isso ao fato de eu não comer demais. Não tenho restos de digestão nas curvas do intestino, então minha barriga não incha. O pessoal hoje é muito louco, age como se a barriga fosse símbolo. Tudo em você é um símbolo: costas, pernas, rosto, cabelo e pele. Com os meus alunos, eu corto essa preocupação. ‘Não se preocupa com a barriga, presta atenção no que eu estou falando.’ Acho que focar nela é erro. Mas qual seria a origem dessa obsessão, em especial dos homens de hoje, pela barriga? Existem algumas pistas, e a primeira delas está ligada à saúde mesmo. A Organização Mundial da Saúde recomenda que os homens não tenham circunferência abdominal acima dos 94 centímetros. Segundo estudos, a concentração de gordura na região abdominal pode elevar o risco de doenças cardiovasculares. Se esse risco estava, antes, associado apenas ao sobrepeso, hoje ele está também na conta dos “magros com barriga”. Pesquisa da Clínica Mayo (EUA) mostrou que a “pochete” é perigosa mesmo para quem não tem sobrepeso – essas pessoas correm um risco 2,75 vezes maior de ter doenças cardiovasculares quando comparadas a indivíduos sem o cinturão de gordura abdominal. Para além do combate à obesidade – não dá pra ignorar dados como o apontado pela revista de The Lancet, de que há mais de 500 milhões de adultos acima do peso no mundo hoje (num ranking em que o Brasil aparece na 19a colocação) –, há um fenômeno do nosso tempo mais ligado à questão da autoimagem. Até nem tanto tempo atrás, os padrões de beleza eram perceptivelmente diferentes. Homens e mulheres podiam ser mais redondos e gominhos na barriga eram coisa de fisiculturistas. Hoje, o ideal da Grécia Antiga (quando as estátuas feitas pelos artistas tentavam dar uma cara humana a deuses dando a eles um corpo reconhecível, mas perfeito) está muito mais em alta do que há cem anos, atesta a professora de história da arte do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, Magnólia Costa. “Essa é nossa referência. Porém, hoje não buscamos isso só na representação, mas também em nossos corpos”, diz ela. Em outras duas épocas importantes na arte que também resgataram os gregos – o Renascimento (século 14) e a Arte Acadêmica (século 18) – o corpo ideal era harmônico e proporcional. Hoje, precisa ser impecável, como se fosse possível reproduzir na vida real o que as imagens altamente retocadas das revistas e anúncios nos colocam como ideal. “As mulheres até podem ser gordinhas, mas não têm celulite. Os homens têm sempre o tanquinho, são sempre fortinhos”, afirma. Um fato, porém, é verdade para qualquer época: “Homem barrigudo nunca teve lugar na história da arte”, diz Magnólia. A arte serviu de termômetro estético até o século 20, quando o capitalismo se tornou dominante. Hoje quem dá as cartas são a moda e a publicidade. O padrão a ser seguido deixou de ser o das galerias e foi servido para consumo das massas. Uma pesquisa feita pela Universidade de Winchester descobriu que os homens de 16 a 36 anos que leem revistas masculinas com frequência têm uma percepção pior do próprio corpo, o que pode levá-los a se exercitar em excesso para ficarem parecidos com o ideal propagado por esses veículos. Outro estudo inglês, este da Universidade de West England, mostrou que 58% dos homens se sentem incomodados quando conversam sobre o corpo. Mais de 80% deles admitiram uma prática que em geral se atribui às mulheres: comentar o corpo de outros homens. Outra consequência importante do capitalismo é o que o psicanalista Joel Birman chama de “medicalização crescente do corpo”. Quando o mundo se viu mais livre da religião (que perdeu o poder de ditar os valores do mundo ocidental), a partir do século 19, “a medicina passou a ocupar um lugar fundamental na nossa existência”, diz. “Trocamos o ideário da salvação pelo da saúde.” Se antes a vida era regulada pela concordância com mandamentos divinos, ser saudável passou a ser o maior valor da nossa cultura. “Criou-se o ideário de um corpo magro como ideário da beleza”, explica Birman. As mudanças nos costumes também têm seu papel. O fim do casamento monogâmico eterno coloca sempre a expectativa de voltar à ativa, diz Birman: “Você não pode deixar o corpo cair. Senão, vai ser abandonado pela companheira e não vai conseguir outra no mercado”. Mas uma barriga aparente está longe de significar corpo caído. “Tem atleta que tem a barriga proeminente, mas tem o abdome extremamente forte”, diz Julio Serrão. Os atletas são, aliás, pessoas que entendem a vital função do core e encaram a barriga como ponto central do corpo. “A gente tem a imagem de que abdome forte é abdome definido, e isso não é verdade. Do ponto de vista mecânico, a coluna está protegida se o core estiver fortalecido, mesmo naquelas pessoas que têm uma camada de gordura sobre a musculatura”, completa. O mundo oriental talvez possa servir de inspiração para lidarmos melhor com a barriga. Para os japoneses, a região da barriga se chama hara e é uma das mais importantes do corpo. É ali que está a alma dos homens. Mais do que isso, o hara é uma representação da própria vida e do universo, “a fonte de energia de todo o corpo”, como explica Marcelo Tadeu Fernandes da Silva, mestre de aikido, psicanalista e professor de educação física nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. Para ele, a barriga é que dá o centro gravitacional do corpo – e estar em equilíbrio é ter uma boa postura. “Por isso a base é tão importante na prática das artes marciais”, observa Silva. “Desenvolver esse centro é uma premissa para ser um bom praticante.” Luiz Maximiano Márcio Atalla, 42 anos, preparador físico e apresentador do quadro “Medida certa”, do Fantástico Circunferência abdominal: 80 centímetros “Não me preocupo com minha barriga. Nunca fui um cara de grandes excessos na alimentação. Gosto é de arroz e feijão mesmo. Nunca tive barriga, minha relação com ela é muito tranquila. Para mim talvez seja mais fácil, porque eu gosto de me exercitar. E não vejo pressão na sociedade para as pessoas serem magras, pelo contrário. Eu acho até que falam pouco da barriga do homem. É bobagem dizer isso num país em que existe essa porcentagem de gente acima do peso” Até para aqueles seres mais desapegados, adeptos da meditação e que não estão nem aí para a estética das próprias barrigas, um cinturão abdominal trabalhado é fundamental: “Quando você medita, é importante que a coluna esteja ereta para que a respiração seja executada em capacidade máxima. E só um abdome forte consegue manter a coluna ereta”, reforça Caio Vieira. Julio Serrão lembra ainda que, quando falamos em abdominal, tendemos a lembrar de um exercício apenas: aquele em que, deitados, flexionamos a coluna para frente. Mas ele diz que esse tipo de exercício exige apenas 50% da capacidade dos músculos abdominais. “Virou moda prescrever 500, 600 abdominais. Isso precisa ser revisto. Tem aula só de abdominal em academias. É bizarro.” Para ele, há muitas outras atividades – pilates, ioga, exercícios com bolas etc. – que exigem bem mais da musculatura abdominal do que o tradicional movimento que todos nós já fizemos na vida. Tratar o corpo como máquina tem suas consequências. Primeiro, deixa-se de lado a percepção de que ele faz parte de um sistema e que depende de outras coisas. Um abdome forte e saudável não pode ser exclusivo de quem se preocupa com a estética. “Ele é importante para todo mundo, do obeso ao idoso”, reforça Serrão. “Pouca gente sabe, mas uma hérnia de disco pode começar com um abdome fraco, que leva a uma instabilidade da coluna, que leva a uma lesão.” O professor lembra ainda que o tão sonhado abdome definido depende muito mais do que o cara come (e deixa de comer) do que do exercício que ele faz. “Quem consegue definir o abdome é quem se esforçou muito na dieta. Ter um abdome tanquinho não é para qualquer um, definitivamente”, argumenta. Qual seria, então, o grande segredo para tratarmos a barriga como ela merece ser tratada? Caio Vieira arrisca: “Temos que aprender a usar o abdome da forma correta. Se pensarmos nele isoladamente, acabaremos usando-o como um bebê: no piloto automático, e apenas para respirar pela barriga e sobreviver”. Ao entendermos a vitalidade dessa área para o dia a dia, ao sacarmos que ele é o centro do corpo e que tem essa função de interligar todas as nossas partes, iremos escolher trabalhá-lo, seja com exercícios ou respirações ou uma combinação dos dois. “A partir daí ele pode até trincar, formar gomos, sair em revistas, o que for, mas isso será apenas resultado. E um resultado que nem é o mais essencial.” “Não tenho problema com ela. Fui atleta de rúgbi até meus 28 anos. Fui da seleção brasileira. Tinha abdome tanquinho não porque me preocupava com isso, mas por causa do esporte. Depois, a barriga superou o esporte. Apesar de tomar cerveja e comer gordura às vezes, tenho uma alimentação saudável. Os médicos ficam putos porque eu tenho indicadores de uma criancinha de 16 anos e eles não podem falar mal da minha barriga. Tenho meus limites. Quando começo a bufar para pôr meia, sapato, sei que está na hora de emagrecer um pouco” “Não há milagre que seque a barriga” A gordura abdominal é difícil de ser eliminada. Para isso, é necessário perder peso com manutenção da massa magra. Pessoas, mesmo magras, podem acumular uma reserva de gordura na região abdominal, algo que a atividade física ajuda bastante a eliminar. Mas não há milagres: se existisse alguma dieta específica, descrita em literatura e com comprovação científica, e/ou alguma pílula mágica para “secar a barriga” – promessas nas quais muita gente ainda insiste em acreditar –, a obesidade não seria um dos maiores problemas em saúde pública nos dias de hoje. A questão estética, preocupação crescente da população mundial (e, na brasileira, muito evidente), tem feito com que muitas ideias se propaguem sem que se tenha muita certeza sobre sua eficácia. Alessandra Coelho, nutricionista clínica da SBCBM (Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica) e Mariana Fontana, especialista em fisiologia do exercício e nutricionista do Instituto Vita, comentam mitos e verdades dessa seara. Deixar de comer carboidratos à noite faz sentido? Luiz Maximiano Murilo Perez, 50 anos, empresário Circunferência abdominal: 130 centímetros “Não tenho problema com ela. Fui atleta de rúgbi até meus 28 anos. Fui da seleção brasileira. Tinha abdome tanquinho não porque me preocupava com isso, mas por causa do esporte. Depois, a barriga superou o esporte. Apesar de tomar cerveja e comer gordura às vezes, tenho uma alimentação saudável. Os médicos ficam putos porque eu tenho indicadores de uma criancinha de 16 anos e eles não podem falar mal da minha barriga. Tenho meus limites. Quando começo a bufar para pôr meia, sapato, sei que está na hora de emagrecer um pouco” Comer de três em três horas é o canal para perder a pança? As maiores besteiras que alguém pode fazer são… E os maiores acertos são… O maior segredo para perder a barriga é... Cerveja e glúten são vilões? O melhor exercício é… Há alimentos que estimulam o gasto de energia pelo corpo? Água com limão “queima” a barriga? Gordura abdominal pode matar? O que a busca pelo shape sarado das revistas diz sobre o homem contemporâneo? O padrão pançudo de outrora está mesmo condenado? E o que a alimentação tem a ver com tudo isso? Com a palavra, especialistas em saúde, bem-estar e comportamento e, claro, homens com as mais variadas circunferências abdominais
Como mantém? Treinos seis vezes por semana
É assim desde: Sempre
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não
Mas daí a assumirmos essa configuração como padrão estético ideal a ser perseguido... é o tipo de fenômeno que nos faz perguntar: estamos indo longe demais?
Como mantém? Ioga de três a seis vezes por semana e alimentação vegetariana
É assim desde: Sempre
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não
A gente deveria focar na saúde de maneira integral'
Como mantém? Uma hora e meia de exercícios diários e alimentação
É assim desde: Sempre
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? NãoMitos e verdades
Não. O carboidrato é um ótimo alimento para ser ingerido no período da noite, pois em geral tem fácil digestão e baixo teor de gordura na sua composição. A atenção deve ser dada à qualidade desse carboidrato e, claro, ao tamanho da porção: como qualquer outro excesso, o de carbo também é prejudicial.
Como mantém? Bebendo cerveja três vezes por semana
É assim desde: Os 28 anos, quando parou de jogar rúgbi
Está feliz com ela? Sim
Mudaria? Não
Essa prática favorece o funcionamento mais acelerado do metabolismo. Além disso, evitar longos períodos sem comer ajuda a controlar volume e qualidade das grandes refeições (principalmente almoço e jantar).
Fazer exercício “vestindo” saco plástico ou roupas pesadas, fazer atividade física em jejum, usar laxantes e diuréticos, fazer dietas com mudanças bruscas nos hábitos alimentares, dietas radicais (à base de sopa, suco, um só alimento etc.), usar cintas, tomar vinagre antes das refeições, comer alho após as refeições… são muitas.
Dieta balanceada associada à atividade física, sob orientação de profissionais capacitados. Além disso, uma dica é nunca mudar a dieta radicalmente: é mais apropriado diminuir as quantidades de comida progressivamente até chegar a um patamar em que o organismo disponibilize a reserva.
Já nem é segredo: estilo de vida saudável. Alimentação equilibrada, atividade física, manter um bom funcionamento intestinal e ingerir bastante líquido. Evitar o fumo, as bebidas alcoólicas e refrigerantes, os alimentos gordurosos e as frituras.
O álcool é um tipo de açúcar de absorção rápida. O consumo excessivo faz com que o corpo reserve o excesso de açúcar na forma de gordura. Quanto maior o teor de álcool na bebida, menor deve ser o consumo, para evitar o ganho de quilinhos... O glúten é vilão só para quem tem intolerância a ele (doença celíaca, diagnosticada). Não há comprovação de que a retirada do glúten traga benefícios ao organismo.
O exercício mais indicado para a oxidação de gordura é o exercício aeróbio realizado regularmente. Um educador físico pode avaliar o tipo, a intensidade e a duração mais indicados para cada pessoa.
Pimentas, canela, gengibre e chá-verde.
É um mito, não há milagres. Mas o limão tem propriedades diuréticas (diminui a retenção de líquido) e possui baixo índice glicêmico.
Existem dois tipos de gordura abdominal: subcutâneo e visceral. Do ponto de vista metabólico, a gordura visceral é pior, uma vez que está próxima aos órgãos e consegue liberar maior quantidade de gordura para o sangue, aumentando o risco de doenças cardiovasculares.
#SeJoga
“A pior perspectiva possível é a indiferença que diz: ‘Não posso fazer nada quanto a isso; vou tocar a vida’. Pensar assim nos priva de uma das coisas mais essenciais no ser humano – a capacidade e a liberdade para a indignação. Essa liberdade é indispensável, assim como o envolvimento político que a acompanha.” Pouca gente compartilhou. Não virou meme, trending topic. Não despertou sequer muitos artigos pelo mundo. Foi discretamente que Stéphane Hessel, o autor da frase acima, um senhor alemão, naturalizado francês, saiu de cena aos 95 anos, em 27 de fevereiro último. Morreu em casa após quase um século dedicado à luta e à mobilização política. Lutou contra os nazistas na resistência francesa, fugiu de campo de concentração, tornou-se diplomata e articulador de movimentos sociais. Rebelde com muitas causas, defendeu o desarmamento nuclear, os imigrantes, as mulheres, a causa palestina. Melhor que ninguém, Hessel encarnou o tipo de ativismo que definiu o século 20. E, talvez, o mais importante: apontou um norte para a complexa transformação que o ativismo vem sofrendo no século 21 quando em 2010, já passando dos 90 anos, escreveu Indignai-vos!. Um livro-manifesto, tão curto quanto incisivo, convocando os jovens a reagir ao que ele via como uma retomada gradual dos ideais e das práticas fascistas. Sua geração, ele diz, deu a vida para impedir o controle privado de governos, a escalada do poder militar, a criminalização da mobilização social e, sobretudo, a subserviência e a passividade civil diante do poder. Virou best-seller enquanto o norte da África explodia em revoluções para derrubar ditaduras e muitos na Europa acordavam para o fato de que seus parlamentos já não os representavam. Foi combustível e inspiração para os indignados que acamparam na Espanha. Sua figura serviu de lastro histórico para movimentos como Occupy Wall Street. Mas, velhinho de tudo e com um legado mais do que consolidado, a morte de Stéphane Hessel não deixa exatamente um vazio. Não como o produzido por outra morte, um mês e meio antes... Aos 26 anos, no meio de uma guerra judicial, e no auge de sua performance como ativista e programador, Aaron Swartz se enforcou em seu apartamento em Nova York. A notícia repercutiu mais do que a partida de Hessel. Mas não foi devidamente compreendida pelos incontáveis ativistas que vêm se organizando pela rede em nome de também incontáveis causas. A morte de Swartz, mais do que prematura, foi um sinal claro de que há uma batalha séria por trás das exuberantes erupções populares nas ruas. Ele era, possivelmente, o mais importante ativista de uma causa sem tanto eco. Mas que, no fundo, é a base, a infra estrutura de todo o chamado “novo ativismo”. A morte de Swartz foi um sinal de que há uma batalha por trás das erupções populares nas ruas Aaron Swartz estava na linha de frente da luta pela internet livre e pela livre circulação de conhecimento e informação. Aos 14 anos ajudou Lawrence Lessig a desenvolver a licença Creative Commons. Fundador e programador do Reddit. Principal voz e articulador do megaprotesto Anti-Sopa, a lei americana que poderia acabar com a neutralidade da internet e com boa parte do fluxo livre de arquivos na rede. Uma gigantesca onda de protestos cibernéticos, a suspensão voluntária de sites como Wikipedia e incontáveis ataques de hackers a sites oficiais do governo americano, engavetaram por algum tempo o projeto. Mas por seu protagonismo, visibilidade, e por ter disponibilizado on-line, gratuitamente, milhares de artigos acadêmicos antes restritos a uma rede no MIT, Aaron foi indiciado por roubo de propriedade intelectual. A promotoria pedia até 35 anos de prisão e US$ 1 milhão em multa. A pressão foi demais para ele. Não deixou um bilhete de suicídio, mas a imagem do jovem prodígio enforcado nos primeiros dias do ano era um sinal claro de que o ciberativismo é algo bem mais profundo do que o simplista rótulo do ativismo de sofá. Pró o quê? Depois de ter eleito em 2010 o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, em 2011 a revista Time estampou como a personalidade do ano uma figura mascarada: o ativista. De um jovem bilionário, o perfeito empreendedor individual, à impessoalidade orgânica do manifestante de rua, parecia haver um abismo entre os dois escolhidos. Não fosse a profunda conexão entre o sucesso da rede social e a viabilidade dos novos movimentos políticos. 2011 foi o ano em que levantes aconteceram pelo mundo todo. Todos muito diferentes entre si, mas com algo fundamental em comum. Ao contrário de todos os movimentos até então, não era possível apontar lideranças ou bandeiras. Não era possível resumir em poucas palavras as demandas ou a demografia de quem ocupava as ruas. Todos pareciam emergir rapidamente, sem que os radares dos governos e da mídia detectassem a tempo. Todos frutos do amadurecimento das redes sociais e da capacidade de mobilização popular direta, sem grupos intermediários, que a internet oferecia. “Nossas identidades não têm corpos, assim, diferente de vocês, não vamos acatar ordens por meios de coerção física. Acreditamos que pela ética, por interesses pessoais e altruísticos, nossa governança emergirá” Análises não demoraram a pipocar na imprensa e na academia. Entusiastas progressistas comemoravam que, finalmente, encontraram algum ímpeto rebelde em uma geração tida como apática. Exaltavam o caráter de solidariedade e pacifismo, o questionamento das premissas do sistema político e econômico. Havia uma promessa de que algo grande, talvez indomável, estava nascendo. Representantes da esquerda tradicional, da mídia e do status quo deram de ombros. Os argumentos gasosos, a falta de demandas claras, de um projeto a ser implementado condenavam os próprios movimentos à efemeridade. E, mais do que isso, à irrelevância diante da “política real”. Como se aqueles acampamentos e passeatas súbitas não fossem capazes de construir uma plataforma viável. Não conseguiriam, avessos ao jogo partidário e eleitoral vigente, ultrapassar a barreira entre as ruas e a institucionalidade. Algo, no entanto, parecia ficar de fora do debate público – mas estava constantemente na pauta de muita gente que ocupou praças, listas de e-mails, passeatas e livrarias em busca de algo... novo. Uma constatação que é a raiz dessa suposta falta de clareza ideológica e programática: não há uma alternativa bem articulada que pareça viável ao capitalismo, à democracia representativa, ao... sistema. Comunismo, socialismo, anarquismo, os verdes... Nomes que precedem a queda do muro de Berlim e que não encontravam mais eco no imaginário das massas. Christophe Pettit Tesson / Max PP O alemão Stéphane Hessel, morto em fevereiro deste ano Antiglobalização? Anticorporações? Antimilitarismo? Anticonsumismo? Pois não. Mas pró o que, mais exatamente? Ficou claro, à medida que o modelo social e econômico ostentava sua obsolescência, que a apatia da nossa geração também podia bem ser fruto da falta de possibilidades ideológicas que não soassem utópicas. De Gaza a Cachorro Lascado Foi preciso que a aldeia global descobrisse a ágora digital para que muita, muita gente se desse conta de que, antes de buscar uma nova utopia, era preciso se levantar contra a distopia do mundo real. Entre profusões de likes, retweets e compartilhamentos dos mais díspares graus de relevância, as causas, indagações e indignações individuais encontraram companhia. Dos que, mundo afora, eram contra o bloqueio a Gaza aos moradores de um bairro que eram contra a demolição de uma escola. Dos que se dedicam à conscientização dos danos ambientais causados pela pecuária aos que buscam alguém disposto a adotar um cachorro lascado. Se em seus primeiros anos de massificação a internet foi uma fronteira comercial, cultural, comportamental, os últimos tempos vêm desenhando uma grande rede cada vez mais consciente de seu potencial político. Avesso a grêmios, estruturas partidárias ou sindicais, o indivíduo conectado começou a descobrir novos contextos para participar desse jogo. Não era mais necessária a adesão a um panfleto, a uma ficha de filiação. Se tornou finalmente possível para uma pessoa desenvolver um discurso político essencialmente individual e de alcance público real. Uma vocação que os pioneiros da web já reconheciam desde os primórdios. Em 1996, John Perry Barlow, ícone da contracultura e da psicodelia dos EUA (perfilado na Trip #177) e quem primeiro batizou o território on-line como cyberspace, lançou a Declaração de Independência desse novo “lugar”. Em uma das passagens mais decisivas, ele proclama aos governos analógicos do mundo: “Nossas identidades não têm corpos, assim, diferente de vocês, não vamos acatar ordens por meios de coerção física. Acreditamos que pela ética, por interesses pessoais e altruísticos, nossa governança emergirá”. Essas palavras definem não só o caráter intangível do cidadão digital, mas é uma espécie de Destino Manifesto da internet: a emergência de um novo sistema político a partir da conexão direta de pessoas e da livre, e virtualmente infinita, distribuição de informação. Justamente a causa final dos movimentos indignados: descobrir, colaborativamente, uma nova forma de nos governarmos. Demorou algum tempo para que os governos aos quais Barlow se dirigia atentassem para essa promessa radicalmente democrática contida na rede. O mesmo tempo que levou para que ativistas e hackers a fim de dar um update do sistema político mundial lançassem as primeiras grandes infobombas. Bastou Julian Assange e Bradley Manning abrirem os segredos diplomáticos dos EUA através do Wikileaks para as tais identidades sem corpos de Barlow se tornarem bastante palpáveis. Manning está há mais de dois anos detido, sofreu tortura psicológica em prisões militares e, muito provavelmente, passará o resto da vida atrás das grades. Assange, o criador do Wikileaks, está sob asilo político na embaixada equatoriana em Londres, sem data para andar de novo sob o sol, sendo caçado por mandados internacionais sem nenhum respaldo legal. Sob o pretexto dos direitos autorais, propriedade intelectual, ou simplesmente em nome da segurança nacional, frentes parlamentares pelo mundo todo, Brasil incluso, se mexem para controlar e criminalizar boa parte das atividades que são a base da livre troca de informação e, por consequência, da livre articulação de pessoas e ideais. As obscuras e específicas sutilezas que definem os protocolos da internet e o texto das leis que podem alterá-los ainda não conseguem comover como, digamos, um Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos. Mas, ao mesmo tempo, a própria rede começa a gerar ferramentas e quadros capazes de fazer o contra-ataque no território do “inimigo”. “Abramovaaz" Ondas digitais bem formadas hoje atingem diretamente o poder. Se não diretamente, forçam a imprensa convencional a reportar o barulho on-line. Buscando organizar, mobilizar e medir o respaldo popular das mais diferentes causas, sites oferecem plataformas para petições que, cada vez mais, penetram dentro da bolha do governo. O maior deles, o Avaaz, reúne cerca de 20 milhões de membros no mundo. O país com mais cadastrados, vejam vocês, é o Brasil. Apenas no último mês, colheu mais de 1,5 milhão de assinaturas contra Renan Calheiros na presidência do Senado. Até o fechamento desta edição, quase 500 mil para destituir Marco Feliciano. Reprodução/Time O ativista, homem do ano de 2011 de acordo com a Time Muita gente ainda desconfia, ou ironiza, da eficácia de abaixo-assinados digitais. Mas basta acompanhar a própria rotina de quem coordena essas iniciativas. Pedro Abramovay, diretor do Avaaz no Brasil, ex-secretário Nacional de Justiça, não poderia ser um exemplo melhor dessa ponte cada vez mais sólida entre o novo ativismo e as instituições. Interessado em política desde sempre, foi presidente do centro acadêmico da faculdade de direito do largo de São Francisco, assessor da Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, assessor de Márcio Thomaz Bastos quando ministro da Justiça, um dos coordenadores da campanha do desarmamento... seu currículo segue bastante analógico até assumir a coordenação das campanhas do Avaaz. Após entregar, pessoalmente, a senadores e deputados volumosas listas de assinaturas, ele mesmo rebate os comentários que firmam que políticos não se importam com petições on-line porque a lei não as reconhece como instrumentos válidos do ponto de vista legal. “Mecanismos de pressão são parte integrante de qualquer democracia de fato. O valor de milhares ou milhões de assinaturas é enorme. Então eu não acho que a gente dependa de nenhuma reforma legal para que algo como nosso trabalho surta um efeito real. Até porque não é a lei que precisa mudar, mas é a própria internet que vai mudar a democracia”, ele reflete poucas horas antes de voltar ao Congresso com outro abaixo-assinado em mãos. Mas sejamos honestos: petições vão derrubar bancadas? Passeatas vão salvar a Amazônia? Acampadas vão encarcerar banqueiros? Memes vão defenestrar papas e pastores? Compartilhamentos vão acabar com o machismo, o racismo, a homofobia? Não exatamente. Ou, melhor, não diretamente. Em um mundo de infinitas pautas, disputando o mesmo campo de atenção e ação política, parece que o novo ativismo, sabendo ou não, acaba por achar um fluxo, uma caudalosa convergência que disputa mais do que leis ou providências: disputa uma nova mentalidade, uma nova narrativa, uma nova consciência política que não tem uma forma clara, muito menos um pensamento uniforme. Mas que parte de um reconhecimento cada vez mais óbvio: o presente, como está, não oferece mais futuro. E a solução, pulverizada e nebulosa como os próprios dilemas, precisa refletir uma ideia tão ancestral quanto cibernética: somos parte de uma só rede. O problema de um vai se tornando o problema de todos. E se omitir, como sempre, é um ato político. Mas que hoje, pra dizer o mínimo, pega mal demais.Na profusão de causas, marchas, passeatas e ocupações organizadas via internet, Trip investiga o ativismo 3.0: o que há de realmente novo na cabeça – e nas armas – de quem sonha em mudar o mundo?
Show do Bilhão
Antes hostilizados pela opinião pública por acumular grandes fortunas, Warren Buffett e Bill Gates, dois dos homens mais ricos do planeta, despertam curiosidade e admiração à frente do Giving Pledge, iniciativa que já arrancou de 105 bilionários o compromisso de doar a maior parte de suas riquezas à filantropia A maior discussão hoje nos Estados Unidos não é a questão dos imigrantes, o direito ao aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização da maconha ou a guerra civil na Síria. O que divide os partidos Democrata, de Barack Obama, e Republicano, da oposição, é a questão sobre como os ricos devem contribuir com a sociedade americana. Os democratas defendem que os milionários paguem uma parcela proporcionalmente maior de impostos. Com esse dinheiro, o governo pode investir em educação, cultura e programas para a redução da pobreza. Os republicanos, por sua vez, acreditam que os ricos, com menos impostos, podem ter mais dinheiro e investir em inovação, abrindo novos negócios, criando empregos e, consequentemente, aumentando o bem-estar de toda a sociedade. Historicamente, os EUA se equilibram entre essas duas posturas econômicas, que variam de acordo com quem estiver no poder. O republicano Ronald Reagan reduziu a intervenção do governo na economia; o democrata Obama aumentou. Mas, independentemente de quem estiver no comando, o capitalismo sempre foi defendido pelos dois partidos americanos. Existe o sentimento de que, graças à iniciativa privada, os EUA conseguiram se tornar o maior polo tecnológico, financeiro, educacional, cultural e de medicina de todo o planeta. Como retribuição, as pessoas que alcançam maior sucesso nos EUA, construindo gigantescas fortunas, desde os primórdios do país, costumam realizar ações filantrópicas. Basta observar o nome da universidade número um do país (e do mundo), – Harvard, uma homenagem a John Harvard, que doou dinheiro de sua herança para a construção da instituição educacional do século 17 nas margens do Charles River, em Cambridge, Massachusetts. No fim do século 19 e começo do 20, foi a vez de fortunas como a dos Rockefeller e a dos Carnegie partirem para a filantropia (quem não visitou o Rockefeller Center e o Carnegie Hall em Nova York?). “Mais de 99% da minha riqueza vai para a filantropia. Meu padrão de vida ficará intacto, assim como o de meus filhos. Eles já receberam somas significativas para uso pessoal e já vivem uma vida confortável e produtiva” Warren Buffett, investidor “Sábio público” Ações como essas não ficaram no passado. No dia 27 de janeiro deste ano, o multibilionário prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, se comprometeu a doar US$ 1 bilhão ao longo de sua vida para a Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, onde estudou. O megainvestidor John Paulson, meses antes, fez uma doação de US$ 100 milhões para a administração do Central Park. Centro do capitalismo mundial, os EUA também são o centro da filantropia. Essa tem sido a história de Bill Gates, de Warren Buffett e de seus antecessores no posto de homens mais ricos do mundo. Primeiro, ganham dinheiro e ficam bilionários. Uma vez atingidos seus sonhos, ajudam a realizar o sonho dos outros. O mais comum ainda é agir como Bloomberg e doar para universidades, museus ou centros culturais. Instituições como o Metropolitan Museum, a Universidade Yale e o Lincoln Center normalmente são o destino das fortunas, mas, nos últimos tempos, iniciativas como a Fundação Bill & Melinda Gates passaram a focar questões globais, como a cura da Aids e o combate à malária. Atualmente, a organização do fundador da Microsoft tem orçamento maior do que o da ONU para algumas iniciativas na África. “Não são as coisas que trazem felicidade. Família, amigos, boa saúde e a satisfação de fazer uma diferença positiva são o que importa. Felizmente meus filhos, que serão os herdeiros principais, estão de acordo sobre isso” Richard Branson, dono do Virgin Group Em troca das enormes doações, os bilionários veem seus nomes associados a iniciativas educacionais, culturais, sociais ou econômicas. O nome oficial do New York City Ballet é David Koch Theater, bilionário da indústria química que pagou por toda a reforma do complexo. Carnegie e Rockefeller são nomes de universidades. Mesmo a Johns Hopkins, que receberá US$ 1 bilhão de Bloomberg, foi fundada por um filantropo. Outro ganho evidente está na reputação. Warren Buffett, hoje quarto colocado na lista dos mais ricos do planeta segundo a revista Forbes (atrás de Carlos Slim, da America Movil – que reúne marcas como Claro e Net –, do próprio Bill Gates e de Amancio Ortega, da Zara), não é mais apenas “o investidor mais famoso da América”, mas uma espécie de “sábio público”, como aponta um perfil publicado em dezembro na prestigiada New Yorker. “No momento em que a hostilidade pública para os super-ricos nunca foi tão grande, ele se tornou não apenas o segundo homem mais rico da América, mas também um dos mais reverenciados”, diz o texto. Buffett e Gates (fortunas estimadas em US$ 67 bilhões e US$ 53 bilhões, respectivamente) são os criadores da iniciativa Giving Pledge (compromisso de doar), hoje uma confraria com 105 bilionários que se comprometeram publicamente a doar metade de suas fortunas para o bem da humanidade. Além dos fundadores, estão na lista gente como Bloomberg, Mark Zuckerberg, do Facebook, George Lucas, peso-pesado do cinema, e Richard Branson, do grupo Virgin. “O objetivo é criar uma atmosfera que atraia mais pessoas para a filantropia”, diz o site oficial. A soma das fortunas supera o PIB da maioria dos países do mundo. Os americanos e, em menor escala, os europeus ainda são os maiores filantropos. É uma cultura que demorou a chegar a outras regiões do planeta, mas já atinge a África, o mundo árabe e mesmo o Brasil. O sudanês Mo Ibrahim, que ficou bilionário na área de telecomunicações ao implementar a telefonia celular no continente africano, premia todos os anos com US$ 5 milhões (mais US$ 200 mil para o resto da vida) os líderes políticos africanos com o melhor histórico de governança e ideais democráticos. De Doha a Beirute, bilionários árabes também investem em educação e tecnologia para o avanço da região. Educação No Brasil, a filantropia começa a ganhar força, mas está longe dos americanos por dois motivos. Primeiro, não existe a cultura da doação. Segundo, há obstáculos (e não incentivos, como nos EUA) para quem quiser doar parte da fortuna. Um bilionário formado na Poli, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, talvez não consiga legalmente dar um prédio de presente para a faculdade onde estudou. Nos EUA, o edifício teria o seu nome e a universidade faria de tudo para conseguir o dinheiro. Jorge Paulo Lemann, homem mais rico do Brasil e 33o do mundo, também é um dos maiores filantropos do país. A opção dele, que se formou em Harvard, foi investir na educação de brasileiros nos EUA por meio de bolsas de estudo e do conhecimento do Brasil entre os americanos, através do financiamento de centros de estudo como o Lemann Center for Educational Entrepreneurship and Innovation in Brazil (Centro Lemann para o Empreendedorismo e Inovação na Educação Brasileira), da Universidade Stanford, além dos da América Latina em Columbia e Harvard. “Meu compromisso é com o processo. Se tenho recursos à minha disposição, vou procurar elevar o nível das futuras gerações de estudantes de todas as idades. Estou dedicando a maior parte de minha riqueza para melhorar a educação” George Lucas, cineasta Mais recentemente, a Fundação Lemann, criada pelo empresário em 2002, deu um passo importante para a educação em território nacional: levou para escolas municipais paulistas a metodologia da Khan Academy, plataforma criada em 2006 pelo educador americano Salman Khan que reúne videoaulas e ferramentas de apoio à aprendizagem. A ação (em parceria com o Instituto Natura, o Instituto Península e o Ismart), já atinge 6 mil alunos do ensino fundamental e é só o começo de um projeto de pelo menos cinco anos. Iniciativas filantrópicas como as de Ibrahim e Lemann talvez tenham importância ainda maior do que o Giving Pledge. Os dois empresários estudaram na Inglaterra e nos EUA, onde tiveram acesso a essas iniciativas, e sabem o quão fundamentais elas são. Ibrahim quer uma África com cada vez mais presidentes democráticos, como Festus Gontebanye Mogae, de Botsuana, e menos ditadores, como Robert Mugabe, do Zimbábue. Lemann, por sua vez, deve formar uma geração de brasileiros comprometidos em alcançar o sucesso em suas carreiras para, posteriormente, retribuir com ações filantrópicas. Assim, poderemos ter, futuramente, alguns Bill Gates brasileiros. Giving Pledge em resumo O que é: campanha iniciada por Bill Gates e Warren Buffett em 2010 O grupo: 93 empresários dos EUA e 12 estrangeiros com fortunas acima de US$ 1 bilhão O compromisso: doar metade do patrimônio para causas humanitárias ou pesquisas A soma: a riqueza combinada dos 105 integrantes é estimada em US$ 500 bilhões
White power
O galego destoava totalmente dos outros garotos de 13 anos de Lagoa da Canoa, município de 18 mil habitantes no sertão de Alagoas. Era estrábico, enxergava mal, tinha a pele e os cabelos brancos. Mas era ele – justo ele, o principal alvo de chacotas dos colegas, chamado de “cego”, “zarolho” e “instalação trocada” – quem namorava a menina mais bonita da escola. “A professora me perguntava se eu queria que ela castigasse os que me incomodavam. Eu dizia que não porque eles tinham inveja de mim. Eu me vingava de outro jeito. Na frente dos moleques, perguntava a minha namorada: ‘O que você acha de mim?’. Ela respondia: ‘Te acho um pão. É o mais lindo de todos’. Aí não tinha pra ninguém”, conta o próprio, dando risada mais de 60 anos depois. O galego, no caso, é Hermeto Pascoal, um dos maiores gênios da música instrumental, com turnês realizadas por Estados Unidos, Japão e Europa e cuja atenção internacional foi despertada ao gravar com Miles Davis, no início dos anos 70. Aos 76 anos, o “bruxo”, como é chamado, mantém intacto o talento para conquistar mulheres: há dez anos é casado com a cantora Aline Morena, 43 anos mais nova que ele. O casal mora em Curitiba, onde o sol castiga menos a pele de Hermeto. O mais famoso albino do Brasil é um exemplo de sucesso e autoafirmação para muitos que, como ele, nasceram com essa rara condição genética que afeta a produção de melanina e causa a falta de pigmentação nos olhos, na pele, nos cabelos e nos pelos. A vida é dura para os albinos. Em primeiro lugar, no Brasil nem se sabe quantos são. Na Europa, estima-se que haja um a cada 17 mil habitantes, mas aqui não há qualquer levantamento. “É como se eles fossem invisíveis. Não existem dados sobre albinos no IBGE, já que não há a variável no Censo: quando questionados, alguns se identificam como negros porque os pais são negros, outros como pardos. Se o funcionário do cartório olha, registra como branco”, afirma Shirlei Moreira, fundadora da Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia (Apalba), única do gênero no Brasil. Não é por acaso que o único grupo organizado dessa minoria tenha surgido na Bahia, estado com a maior população negra do país. “A maior incidência de albinismo ocorre justamente entre afrodescendentes”, explica o dermatologista Marcus Maia, coordenador do Programa Nacional de Controle de Câncer de Pele e responsável pelo Pró Albino, programa da Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, que oferece atendimento de saúde gratuito a 71 albinos. A cada três meses, Maia e o oftalmologista Ronaldo Yuiti Sano fazem avaliações nesses pacientes para evitar que desenvolvam problemas como câncer de pele, envelhecimento precoce da pele e perda da visão. Gustavo Lacerda Andreza Cavalli, do grupo Albinos do meu Brasil Os problemas de saúde surgem cedo. “Logo que nascem, muitos já apresentam baixa visão por causa da falta de pigmentação na retina. Na infância, têm dificuldades para acompanhar a escola porque não conseguem enxergar a lousa. Há muita evasão escolar. Muitos não sabem ler ou escrever, o que os deixa ainda mais isolados”, conta Shirlei, da Apalba. Também há o problema da pele, que envelhece muito rapidamente. “Já vi garotos de 20 anos com a pele de alguém de 60 anos. Dependendo do grau de exposição ao sol, podem desenvolver câncer de pele.” Para se proteger, a estudante de educação física Andreza Cavalli, de São Paulo, procura usar calças e camisas de mangas compridas. Todos os dias, passa protetor solar com fator 60 nas regiões descobertas do corpo. “Além disso, uso óculos escuros e chapéu. É uma obrigação, não tenho escolha. Vira um hábito como escovar os dentes”, explica a moça, que criou um grupo no Facebook chamado Albinos do meu Brasil e do Mundo para trocar dicas e informações sobre o tema. Um grupo de 20 deles se reúne periodicamente para conversar. Albino incoerente Existem no mercado roupas e chapéus com proteção contra raios ultravioleta, mas os preços são altos. “Uma camisa custa R$ 200. É cara e as cores e os modelos são limitados”, explica o professor universitário Roberto Bíscaro, autor do blog Albino incoerente – perspectivas albinas de vida. Criada em fevereiro de 2009, a página recebe 300 visitas por dia. “Não existia praticamente nada sobre albinismo em português. Criei o blog na tentativa de preencher essa lacuna e acabou virando uma referência. Tem agências de propaganda que me procuram em busca de personagens albinos para comerciais.” A falta de estatísticas dificulta a criação de políticas públicas voltadas para a minoria. “É um círculo vicioso. É difícil definir ações de governo porque você não sabe quem é o público-alvo, quantos são e onde vivem”, afirma Roberto. Campanhas contra o preconceito também são necessárias. “Conheço muitos albinos que não conseguem emprego por causa da aparência”, diz o professor. A questão da autoestima é um dos temas mais delicados. Autor da série “Albinos”, da qual fazem parte as imagens espalhadas por estas páginas, o fotógrafo mineiro Gustavo Lacerda conta como lidou com isso. “Eu queria imagens posadas e não ‘roubadas’ na rua. Convidava as pessoas, elas vinham, eram maquiadas e tinham um figurino. Elas eram o centro de atenção, mas não de uma maneira negativa como estão acostumadas. Pelo contrário, a ideia era ressaltar a beleza”, afirma o artista, que começou o trabalho em 2009. Desde então, o ensaio recebeu o prêmio Conrado Wessel de Arte 2011, foi exposto na mostra Europalia, em Bruxelas, e será exibido em setembro no Museu do Quai Branly, em Paris. Além disso, um livro com as imagens será publicado pela editora Madalena, do fotógrafo Iatã Cannabrava. A ideia de melhorar a autoestima funcionou. Pelo menos no caso de Patrícia de Matos Cardoso, a escoteira que aparece na abertura desta reportagem. As fotos da adolescente de 16 anos e de Andreza Cavalli foram adquiridas pelo Museu de Arte de São Paulo para fazer parte da Coleção Pirelli. “Eu era insegura com tudo. Não me achava bonita. O ensaio mudou minha visão sobre mim mesma.” Quando foi ao estúdio de Gustavo Lacerda, Patrícia só queria uma foto. Nem sonhava que aquilo iria para tantos lugares. “Foi uma ótima surpresa”, ela conta. Gens Grossman/LAIF Crianças da Tanzânia IMAGINE NA TANZÂNIA Em algumas regiões do continente africano, a situação dos albinos é ainda pior do que no Brasil. O caso mais grave é na Tanzânia, onde em algumas tribos acredita-se que partes dos corpos dos albinos têm poderes mágicos, o que leva ao assassinato e à mutilação de centenas deles. Há também os casos de garotas albinas que são estupradas por homens portadores do vírus HIV por causa da crença de que elas curariam a Aids. Para lutar contra essas atrocidades, existe uma ONG canadense chamada Under the Same Sun, que dá assistência aos albinos na região. O site da organização é www.underthesamesun.com Vai lá: Apalba: www.apalba.org.brEm um mundo em que, com um pouco de articulação, toda causa consegue reverberar, Trip foi atrás de entender como tem evoluído a luta de um grupo que antes vivia escondido: o dos albinos
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo: www.santacasasp.org.br
Blog do albino incoerente: www.albinoincoerente.com
Albinos do meu Brasil e do mundo: www.facebook.com/groupsalbinosdomeubrasiledomundo
Se não agora, quando?
Tá rindo de quê?
ariovaldo/cpdoc jb
Chico Anysio faz show em São Paulo, em 1971
Pobretões estropiados, presidentes militares, galãs de novela, famílias arruinadas, casais neuróticos, gays, celebridades: ao longo dos anos, o que as vítimas preferenciais do humor da TV brasileira revelam sobre a nossa sociedade
Num país que perde tudo, menos a piada – basta lembrar quantas horas demoramos para começar a rir de grandes ídolos mortos, como Tim Maia e Ayrton Senna –, o que os maiores sucessos do humor de massa nos dizem sobre o Brasil? Da era de ouro do humor de tipos de Chico Anysio e Jô Soares à recente explosão da graça cáustica do grupo independente Porta dos Fundos – passando por formatos cuja longevidade desafia a lógica, como A grande família e A praça é nossa –, em quem temos adorado ver nossos humoristas baterem?
Os pobres e/ou estropiados, como o Bronco, de Ronald Golias, sempre tiveram nossa preferência. Nos primeiros anos da TV brasileira, o personagem dividia com a Velha Surda de A praça (que nasceu A Praça da alegria) a tarefa de entreter a audiência, enquanto o país afundava em atos institucionais cavernosos.
Se não tiveram graça nenhuma, os anos de regime militar ao menos alimentaram pérolas do humor. Entre os tipos que Jô e Chico encarnavam nos anos 70 e 80, sobressaíam-se os que parodiavam políticos em evidência ou faziam alusões veladas ao regime. Anysio criou Salomé, a velhinha gaúcha que passava pitos no então presidente João Figueiredo; Jô, o milico que acordava de um coma com Sarney na presidência (“Me tira o tubo!”) e Sebá, exilado político que vociferava, ao ouvir notícias do Brasil: “Você não quer que eu volte!”. Isso tudo em um tempo em que a Censura era uma ameaça; um dos grandes sucessos do hunorista, o Capitão Gay, quase morreu antes de nascer: havia um coronel em Brasília que tinha Gay no nome, e Jô temia irritá-lo com o personagem.
“Apolooooonio, É você, Apolônio?”
Rony Rios, a Velha Surda
A Praça da Alegria/A Praça É Nossa
(TV Paulista/Globo, 1957)
Rir da ditadura, eventualmente, cansaria. A virada para os anos 1980 e o processo de abertura política trazem à baila novas vítimas e novas formas de rir delas. TV Pirata (1988) batia em ricos e remediados, mas tinha como principal cristo a própria Rede Globo e sua onipresença no imaginário do país; Casseta & Planeta (1992), de verve mais política, inaugurou o “jornalismo mentira, humorismo verdade”. Se o primeiro deriva do teatro besteirol, o segundo é filho do tablóide underground Planeta Diário (1984), que atirava para todo lado, com manchetes como “Wilza Carla explode na Terça-Feira Gorda” e “Sobral mata a cobra e mostra o pinto”.
“Jô e Chico faziam humor de resistência. A Casseta e o Planeta nasceram para fazer um contraponto a isso em um período de redemocratização”, diz Marcelo Madureira.
Ricos pobres e pobres ricos
Nos anos 90, em plena redemocratização, são as mudanças no topo da sociedade brasileira que alimentam o maior sucesso humorístico da TV. Uma família de ricos submergentes, produto acabado da era de incertezas econômicas dos governos pré-real, é a vítima de eleição de Sai de baixo, que turbinou a eterna sitcom familiar com uma boa dose de improviso – era gravado de um jeito algo retrô, ao vivo e com plateia. “A família classe A falida era engraçada na época, assim como hoje a gente ri da ascensão da classe C”, diz a atriz Marisa Orth, que fazia a descerebrada Magda no humorístico.
'Ô da poltrona'
Renato Aragão em Os Trapalhões
(Globo, 1977-1995)
Prova viva da própria fala, ela encabeça o núcleo cômico da novela Sangue bom, que acaba de estrear na Globo, no papel da filha de um feirante que enriqueceu. Mas nem por isso acredita em grandes mudanças no humor feito na TV brasileira. “Sai de baixo era commedia dell’arte, um gênero do século 16. A árvore de Natal é a mesma. O que muda são os enfeites”, ri.
Coisas de casal
Na virada do milênio, em clima de democracia, estabilidade econômica e “liberdades individuais” garantidas, o que desponta como motivo de riso é, mais que a política ou a economia, a neurose conjugal, praga que une ricos, pobres e classe média numa identificação em larga escala. Os normais (2001), sitcom modernizada, promove uma mudança sutil no foco da graça. “Há dois tipos de humor. O que ri dos outros e o que ri de si mesmo. Os normais era do segundo tipo”, diz Alexandre Machado, cocriador, com Fernanda Young, da série e de O dentista mascarado, que marca a estreia de Marcelo Adnet na Globo.
Bater nos outros, contudo, não sai de moda. Longe disso. Pânico, sucesso radiofônico que chega à TV em 2003, aposta num pastiche poderoso que ressuscita o humor de tipos, abrasileira as tiradas nojentas do programa americano Jackass e manda chumbo grosso contra nosso deslumbramento diante das celebridades. “Brincamos muito com esse culto aos famosos e com a ideia de que o sucesso ($$) transforma o ridículo em respeitável”, diz Emílio Surita, cabeça do programa.
"Eu faço a cabeça do João Batista ou não me chamo Salomé"
Chico Anysio em Chico Anysio Show
(Globo, 1982-1990)
Sucesso de audiência, Pânico desafia não só o bom gosto, mas o formato humorístico tradicional. “Estamos no horário mais competitivo da TV e temos obrigação de ser populares, mas nem por isso deixamos de brincar com a percepção do telespectador. Misturamos realidade e ficção, personagens e gente real. Temos um time irrequieto e sem medo de errar”, diz Surita. “Eu, particularmente, não gosto, mas acho que programas como o Pânico ajudam no processo de amadurecimento do público brasileiro em relação à comédia televisiva”, acredita Alexandre Machado. “Eu quero mais é que eles explodam todos os limites.”
Adir Mera/Ag. O Globo
'CANSEI!' - Jô Soares como Capitão Gay em Viva o Gordo (Globo, 1981-1987)
Censura branca
O panorama do humor televisivo atual mostra que ainda há público para os tipos caricatos de Zorra total e A praça é nossa, o humor familiar de A grande família, e novidades como o CQC (2008), formato argentino que aposta em constranger políticos, religiosos e artistas. Mesmo assim, sugere uma certa crise de criatividade na TV, atribuída por muitos humoristas ao que consideram uma nova forma de censura: a moral do politicamente correto, reforçada por leis como a 9.504, que proíbe sátiras a candidatos em época eleitoral, e pela ameaça de processos por ofensa.
A campanha contra agressões (real ou supostamente) cometidas por humoristas coincide com a organização da sociedade civil e o avanço das defesa dos direitos das minorias, mas sugere exageros de parte a parte.
“Essa patrulha do moralismo também tem fins lucrativos. Hoje fundar uma ONG em defesa dos anões caolhos gera dinheiro e é preciso justificar esse dinheiro. Essas representações sociais são muitas vezes questionáveis, veem preconceito em tudo”, diz Madureira.
“A criatividade humorística foi manietada pela autocensura do politicamente correto. A comédia de hoje parece algodão-doce”, diz Elias Thomé Saliba, professor de teoria da história na USP e autor de Raízes do riso (Cia. das Letras).
O surgimento de uma geração de comediantes “de pé” e a disseminação dos esquetes caseiros em vídeo, viralizados na internet, estão contribuindo para renovar o humor brasileiro – e pôr mais lenha nessa discussão sem fim. Um dos comediantes revelados pelo stand-up, Danilo Gentili foi acusado de crime de racismo pelo Ministério Público por uma piada que rimava negro e macaco. “Todo mundo fala de Chico Anysio e Jô Soares como se fossem santos, nesse sentido”, lamenta Gentili. “Mas eles faziam piadas sexistas, zoando homossexuais, raças, credos. O mundo faz piada disso.”
"Quem eu pensei pra fazer Deus é Seu Jorge"
Fabio Porchat em Brainstorm, esquete de Porta dos Fundos
O que distingue graça e preconceito, na opinião de quem faz humor? “Quando a piada é boa, faz rir automaticamente, não existe agressividade”, acredita Madureira. Paulo Gustavo, criador do monólogo Hiperativo, ressalva. “O melhor humor é o que faz rir e diz algo; o pior é o que apela para grosserias e humilhações.”
O humorista negro Marcelo Marrom vai mais longe. De peruca loura, ele arranca gargalhadas com um monólogo teatral que tem como alvo o negro. “Agora, em vez de me chamar de negão, o pessoal grita na rua: ‘Afrodescendente só faz merda’.” Transformar o que vive em piada é seu trabalho, afinal, justifica-se. “Nossa cabeça mudou pra pior. Chamar o negro de afrodescendente não melhora sua vida”, diz. “O preconceito não está na nomenclatura, mas no coração das pessoas. Posso usar termos como ‘crioulo’ sendo e não sendo preconceituoso. É questão de inflexão, momento, tom. É ignorância pensar que tudo é preconceito.”
Tempos velozes
Há luz no fim desse túnel? Sim, diz Alexandre Machado. “O politicamente correto é uma questão superada em outros países. Na TV americana, há um renascimento do palavrão, do mau gosto, da comédia maluca. Girls é uma série de humor que testa limites de uma forma impensável há dez anos. As pessoas aparecem peladas o tempo todo, transando, exatamente como são.”
UH/Folhapress
'Ô Cride!' - Ronald Golias em Família Trapo (Record, 1967-1971)
Menos animado, Madureira acha que o estado do humor reflete “uma certa regressão da sociedade”. “A TV aberta não comporta mais um conteúdo iconoclasta, arrojado. E quase não se fala de política no humor. Nossa sociedade reclama, mas não se engaja. De forma grosseira, há uma alienação”, opina.
Fã de vários dos comediantes que surgiram na última década – Paulo Gustavo, Marcelo Adnet, Katiuisca e, em especial, Fabio Porchat e Gregório Duvivier, dois dos criadores do sucesso virtual Porta dos Fundos –, a atriz Regina Casé discorda. “Tem um episódio deles que mostra toda a cadeia alimentar brasileira: ladrão, favela, delegado, pastor”, diz, referindo-se ao esquete em que um motorista de táxi é roubado por um traficante, que é achacado por um policial, que é afanado por um deputado, que, afinal, perde para o taxista, que se diz pastor evangélico e cobra o dízimo. “Acho isso altamente politizado”, ela diz. “É uma crítica contundente a um momento que a gente está vivendo.”
Desgraças brasileiras e males contemporâneos, como o tédio da vida corporativa e os péssimos serviços oferecidos pelas empresas das quais dependemos no dia a dia – telefônicas, por exemplo –, estão entre os temas do Porta dos Fundos. Para Fabio Porchat, um de seus criadores, os temas não são o ponto, mas o ritmo. “O ritmo das pessoas muda e as piadas têm de mudar pra acompanhar. Hoje estamos em um ritmo mais acelerado. Daí o formato do Porta dos Fundos, com esquetes de poucos minutos e tiradas rápidas. Não mudamos nada. Seguimos o modelo de esquetes de TV pirata, Monty Python. O que aconteceu foi que acertamos no timing.”
Por que amamos tanto o que não muda nunca?
Por: Eugênio Bucci
As crianças, antes de dormir, gostam de ouvir histórias. De preferência, as mesmas. Sob as cobertas, pedem aos pais que leiam os mesmos livrinhos, já gastos, puídos, cujos textos elas passam a decorar. E então gostam ainda mais daquelas palavras, aquelas mesmas palavras repetidas.
Depois as crianças crescem e seguem em busca de narrativas repetidas para seus tortuosos itinerários eróticos. As aventuras sexuais de uns e outros podem trazer novidades retumbantes para uns e outros, mas, se elas forem mesmo um filme quente, as legendas serão quase sempre iguais, com poucas variações.
O prazer da gente busca aninhar-se no conhecido, no familiar. O prazer se compraz não em conhecer, mas em reconhecer. A “vítima” do sedutor mira o estranho bem nos olhos e diz: nós somos íntimos desde tempos imemoriais. Não foi por outra razão que a indústria do cinema se organizou, disciplinadamente, em gêneros fixos. Os filmes são “devices” para entregar aos clientes o tipo exato de emoção que eles querem comprar. Os outros ramos do entretenimento também funcionam assim. Todo jazz é igual ao jazz, todo samba é idêntico a si mesmo, todo sertanejo universitário cacareja em dueto previsível. Aí o freguês compra, se reconhece e goza.
TV Globo/Zé Paulo Cardeal
'Cala a boca, Magda' - Miguel Falabella e Marisa Orth em Sai de baixo (Globo, 1996-2002)
Por que a nação prefere ver o futebol na Globo se nos outros canais a imagem é potencialmente igual? Simples: porque a voz do Galvão Bueno, que muita gente xinga, faz com que todo mundo se sinta em casa. Faz com que todos se reconheçam em casa. Que o tal Galvão seja o maior salário da TV brasileira (ou um dos maiores, vá lá) não surpreende. É ele que segura a audiência. Não por inovar, mas por ser igual, conhecido, já sabido.
Também com as piadas é assim: a gente adora rir da mesma piada. É mais confortável do que rir de piada nova – coisa mais chata, mais trabalhosa. Rir da mesma piada é mais prazeroso. Só o que se pede é que haja uma pitada de invenção, discreta, mínima. O gosto verdadeiro é o do mesmo – exatamente como na gastronomia.
No meio da aula, anuncia: “Agora eu vou contar uma piada”. Imediatamente, a classe inteira começou a rir, antes mesmo da piada. Os alunos se sentiram autorizados a rir – e isso, apenas isso, fez com que rissem com muito gosto. Foi uma boa risada coletiva, e quem ri coletivamente se sente mais em casa ainda, mesmo que seja na escola.
Para que servem as risadas gravadas ao fundo da trilha sonora das sitcoms? Elas servem para autorizar o riso. Quem ri coletivamente cumpre uma ordem –
e adora. Concorda, aceita e adora. A compensação para quem ri em tropa é sentirse pertencente.
Ah, sim, dizem que o humor liberta. Francamente, há piadas melhores. Só o que liberta é a dissonância, a dissidência. Na indústria do entretenimento, o humor apenas compacta a audiência – que, em lugar de marchar unida, gargalha unida. E se sente de volta à casa materna, à eterna, sempre aberta casa materna, sempre à espera dos que se dispersaram, perderam-se no mundo, mas um dia retornarão ao aconchego final. Um útero, um túmulo.
Por isso, o humor que vence na televisão é o que tem em si a capacidade de repetir-se ad infinitum. O Zé Bonitinho é o personagem mais importante dos humorísticos televisivos. A Praça é nossa é uma capitania hereditária, que cruza os tempos e as megatransformações tecnológicas sem dar sinal de esmaecimento. Essas coisas são o nosso cadáver de Lênin, aquilo que não muda para que tudo o mais se esboroe à vontade. As mesmas piadas de sempre, as mais cadavéricas, acolhem os infelizes na sua morada idílica.
Diante disso, não deveria intrigar a ninguém o fato de que os humorísticos mais ressequidos são aquilo que a televisão brasileira nos oferece de mais novo. E de que os humoristas mais novos, a um golpe caprichoso do tempo acelerado, acabem se convertendo no que temos de mais ressequido.
As crianças, antes de dormir, pedem que lhes contem uma historinha conhecida, assim como os velhos, antes de morrer, só desejam rir um pouco de uma piada que, segundo creem, não envelheceu.
Faz-me rir
“Bom dia, minhas pombas-rolas!”, era como Sineide Pereira saudava as senhoras que subiam – algumas com certa dificuldade – no ônibus que partiria da zona leste de São Paulo para o SBT. “Mas você tá a cara da riqueza, meu bem”, acrescentou a uma delas, para em seguida dar-lhe um tapinha no derrière. “Sua safada!” Desde 1999, a pernambucana arretada, de 50 anos, é encarregada de selecionar e levar as pessoas que compõem o auditório de A praça é nossa. Ao lado do Zorra total, da Rede Globo, que não permitiu a entrada da Trip em seus estúdios, ele é o único programa da TV brasileira que ainda utiliza uma claque de verdade, isto é: as risadas e os aplausos que você escuta na transmissão foram gravadas ao vivo, não são uma trilha pré-gravada incluída na edição. “Nos outros programas você percebe na hora que as gargalhadas são sempre as mesmas, artificiais. Acho ridículo”, critica a expert. São em média 40 pessoas (30 mulheres e 10 homens) em sua caravana. “O SBT não deixa eu levar menos de 37. Se alguém falta ou fica doente, dou um jeito de substituir na hora. Em 14 anos, nunca deixei de cumprir minha missão”, gaba-se. As mais desinibidas, de riso fácil, são convocadas toda semana. Com as “mais apagadinhas”, ela faz um rodízio. “Tenho mais de 500 pessoas cadastradas. Falo para todo mundo espalhar meu telefone. Sou garota de programa”, brinca. O difícil é agradar todo mundo. “Teve uma mulher que me esperou fora do ônibus com uma faca, porque eu disse que não ia poder levar ela. Desci e falei: ‘Vem cortar o meu bucho que eu quero ver!?’ Mas essas pessoas não me atingem, são apenas pedras que eu tiro do caminho.” Jordi Burch A pernambucana Sineide Pereira, que desde 1999 seleciona pessoas para o auditório de A Praça É Nossa As idades flutuam entre 18 e 87 anos. Senhoras são maioria; senhores eram coisa rara, mas são cada vez mais frequentes. “Teve um que me deu um problemão: engasgou com a dentadura, acredita?!”. Teresinha Augusto, 74 anos, é a integrante mais animada da trupe, e também uma das mais antigas: segue Sineide neste e em outros programas desde que ela virou caravaneira. “Vim parar aqui porque minha risada é famosa. Meu pai até batia na minha boca de tanto que eu gostava de rir”, rememora, arrematando, claro, com uma gargalhada, aguda como a de uma criança. Quando vê o fotógrafo que acompanhou a reportagem, puxa palmas e entoa Michel Teló: “Delícia, delícia, assim você me mata”. Sentada ao seu lado está Amely Costa, 78 anos, também proprietária de uma senhora risada. “Não deixam nem a gente sentar perto na gravação”, lamenta. Fã dos quadros de Paulinho Gogó e da Turma do Rapadura, ela conta que, se for preciso, desmarca até o médico para contribuir com a claque. “Rir, para mim, é o melhor remédio. Eu vivia depressiva em casa, sozinha. A Sineide mudou minha vida”, revela. “E ainda ganhamos um dinheirinho bom. Pago a conta de água e faço a feira com ele.” Amely, Teresinha e demais membros da “família”, como Sineide gosta de chamar, recebem R$ 20 por dia da emissora, além de dois lanches (um na entrada, outro na saída) com refrigerante, sanduíche e bombom. “Parece pouco, mas tem muita gente aqui que passa a semana com esse dinheiro. Às vezes, trago três pessoas da mesma família para ajudar. Uns usam para carregar o bilhete único e ir atrás de emprego, outros vão direto para o supermercado”, diz. “Eu não como mais salsicha, né?! Mas eles vão lá e compram salsicha, arroz, feijão...” Sineide era dona de salão de beleza até “ganhar” uma caravana de um cliente que trabalhava no ramo, quando ela disse que não tinha dinheiro para fazer os óculos de uma das três filhas. “Meu marido, que hoje graças a Deus é ex-marido, não queria nem saber.” Não é contratada do SBT, mas recebe R$ 250 por dia de trabalho. As gravações são semanais, geralmente às terças-feiras. Ela realiza ainda caravanas para outros programas, como Domingo maior, CQC e Pânico (“nesse só vai moleque, todos doidos para ver a bunda das panicats”), organiza excursões para cidades históricas e hotéis-fazenda e revende produtos de cama, mesa e banho. Por mês, estima, tira pelo menos R$ 3 mil. “Hoje tenho apartamento próprio, carro e casa de veraneio. E ainda paguei curso para todas as minhas filhas. Disse pra elas: ‘Eu dou um caminho. Você faz dele um infinito.’” Jiló e quiabo O ônibus, cedido pela emissora, sai do Itaim Paulista às 11h30. Depois faz mais duas paradas para buscar outros caravanistas e um pit-stop em um posto de gasolina, próximo ao estúdios do SBT, na Anhanguera. É quando todos sacam suas marmitas da bolsa e forram o estômago para aguentar as quase seis horas de gravação. Querida por todo mundo, Sineide nem precisa levar almoço: ganha de presente um Tupperware “com arroz, mistura, jiló e quiabo”. Na TV, antes do luminoso “On Air” do estúdio 3 acender, Roque, o fiel escudeiro de Silvio Santos há 54 anos, faz as honras da casa. Os donos das melhores risadas (leia-se: nem muito alta, nem muito baixa) são colocados nas filas da frente; os que riem de forma mais exaltada ficam no fundão “Quem inventou esse negócio de claque”, jura, “fui eu”. “Nos tempos da rádio, quando vinha gente desconhecida para cantar, eu arranjava 20 fãs histéricas em um minuto. Ou quando era enterro de gente famosa e sem amigos eu descolava um monte de gente para chorar.” As risadas de hoje não são boas como as de outrora, na sua opinião. Ele tenta explicar: “Eu arranjei um cara que ria assim: ihhhhh hahaha! Parecia um avião decolando. Outro era assim: há! Só isso, bem grave. Hoje todo mundo ri igual. Aliás, vou falar sobre isso com o Carlos Alberto de Nóbrega [apresentador de A praça].” Pouco antes das 15 horas, a caravana de Sineide faz fila indiana para entrar no estúdio. Os outros quarenta assentos serão ocupados por outra caravana, a de dona Isa, que não quis revelar o sobrenome nem posar para fotos. Os donos das melhores risadas (leia-se: nem muito alta, nem muito baixa) são colocados nas filas da frente; os que riem de forma mais exaltada ficam no fundão. Três microfones pendendo do teto registram tudo. Quem faz a mágica acontecer é a assistente de palco Carla Liberal. Com o roteiro nas mãos, já com as piadas marcadas, e de olho no monitor, ela fica em frente à plateia pedindo risadas ou aplausos. É instantâneo: ela levanta um braço e as 80 pessoas (menos uma, que estava adormecida) explodem em gargalhadas; levanta o outro e parece que o volume dobra; abaixa os dois e não se ouve mais nem um pio. “Acho incrível a capacidade que essas velhinhas têm, pois eu mesma não consigo rir se me pedirem. Elas riem mesmo quando não entendem a piada”, diz Carla, que costuma ganhar presentes e doces caseiros das integrantes de sua “orquestra do riso”. Nos intervalos, alguns caravanistas pedem para tirar fotos com os atores. Os poucos rapazes presentes preferem assediar a atriz Fabiana, mulher de Alexandre Frota, provavelmente atraídos pela comissão de frente – e de trás também – artificialmente avantajada da moça. Enquanto isso, Sineide fica na sua. “Quando comecei no ramo, gastava tudo que ganhava em filme de Polaroid. Tirei foto com todo mundo. Hoje em dia não. Sei que os famosos são pessoas normais, que nem eu”, diz. A caravaneira já desfrutou de seus 15 minutos de fama, fazendo pontas na Praça. “Já me chamaram para ser mãe de mafioso, sogra... Já fui sapatão também. Adorei! Fiquei idêntica.”Trip passou um dia com uma turma que é paga para dar risada – e para induzir você a fazer o mesmo. Conheça os integrantes do auditório de A Praça é Nossa, uma das últimas claques de verdade da TV brasileira